Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
Tenho uma lista de palavras sem as quais a vida talvez seja mais fácil, mais agradável, menos azeda e repetitiva. Em bom cearensês, são termos que já estão fubá, como aquela camisa comprada dois anos atrás e cuja gola se afolozou rapidamente, a manga enviesada que não presta mais. Ou aquela calça de elástico morto, cor de burro quando foge, como dizia a vó.
Enfim, um léxico já usado e abusado, seja porque recorremos muito a essas palavras, seja porque, por preguiça mesmo, porque procurar palavras novas é uma tarefa e tanto, a gente se cansou e ficou dando voltas em torno do mesmo sentido, cavando um buraco nas palavras e delas extraindo até a última gota de significado.
Daí que resiliência, que já era antiga e gasta em 2016, hoje não tenha quase nada a dizer, salvo em frases feitas ou clichês de propaganda de banco. E reparem que a publicidade de bancos são os cemitérios das palavras. Quando alguma delas figura numa peça com uma menininha e uma atriz consagrada, por exemplo, é porque seu poder de mudança se atrofiou, morreu feito a estampa da roupa de cinco anos atrás, a paisagem desbotada nas costas do agasalho.
Mas e aí, o que fazemos quando uma palavra deixa de fazer sentido, quando desaparece ou é invisível porque ninguém liga mais pra ela? Palavras também morrem, são substituídas, esquecidas numa gaveta, ou ficam apenas guardadas até que o tempo as recupere?
Quando era criança, ganhava roupa dos primos mais velhos, num intercâmbio para o qual eu contribuía com as minhas próprias roupas velhas, que eram cedidas para os primos mais novos e assim por diante. Tal como o Simba, a gente era apresentado a um guarda-roupa familiar diante do qual nossos pais diziam: tudo isso um dia será seu. E depois era mesmo, mas então acabava, e aquele vestuário que viera de empréstimo passava a outro e a outro, como numa corrente. As roupas se revestiam de memória.
O que isso tem a ver com palavras? Acho que muita coisa. Palavras e mudas de roupas têm certas semelhanças. Cobrem-nos o corpo, algumas se ajustam melhor a uns que a outros, perdem coloração com o tempo, ficam enterradas sob camadas de outras peças no fundo de algum baú até que alguém as encontre e revele depois de anos e anos. E, finalmente, ganham uso diferente daquele para o qual tinham sido criadas, renascendo noutra época, vivida por outra gente.
Palavras e roupas são primas, estão unidas por um elo que é como um fio qualquer, trançado por mão que não conhecemos, mas que existe, está lá. A roupa se costura com lembranças tanto quanto as palavras com os sentidos, os próprios e os que lhes damos, de modo que cada uma chega carregada e vazia, pronta a se encher com o que tenhamos.
O problema da palavra muito usada é o mesmo da roupa antiga: já não nos serve. Mas o que fazer com elas? Combinar o novo com o velho? Passar adiante? Ou aceitar que, como o tecido, o corpo da palavra também se destrama, revelando as casas alargadas entre os pontos, as linhas frouxas, como a gola dessa camisa que acabo de dobrar e depositar no fundo da gaveta?
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