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A farmácia da esquina
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

A farmácia da esquina

Tipo Crônica

Recentemente uma nova farmácia abriu na esquina perto de casa. Houve quem comemorasse. O parque está deteriorado e a pista de skate, sem iluminação, mas a farmácia recém-inaugurada é uma beleza, um marco no bairro, um equipamento que incrementa a vida da comunidade, principalmente nestes tempos gripais.

Fachada reluzente, cores vibrantes, desenho sinuoso e convidativo. Eu, que não gosto de farmácia porque me fazem lembrar de injeções, caí na tentação feito uma mariposa atraído pela luz incandescente. Entrei na farmácia, e dela não saí mais. Escrevo agora ao fim da gôndola das fraudas, perto das pomadas e antes dos soros fisiológicos.

Aconteceu aos poucos. Primeiro tentei ignorá-la, subestimando seu poder de atração e desconsiderando que uma farmácia conquista as mentes devagar. Parávamos para abastecer, então eu olhava para o outro lado. Até comentava: quem precisa de mais uma farmácia ao lado de casa.

Ninguém, evidentemente, mas por que não visitá-la? Foi o que fiz um dia quando precisei de um remédio para febre depois de apresentar sintomas de influenza. Voltei no dia seguinte, e no outro também, passando a frequentá-la com a mesma assiduidade que dedicava à biblioteca, ao cinema e à praia. Se voltava da praça, incluía a farmácia no roteiro, apenas pelo prazer de deitar a vista nas caixas e rótulos de medicamentos dos quais talvez eu venha a precisar.

Por que não garantir, então, que estejam todos em casa antes? Não seria previdente estocar os fármacos e antecipar as manifestações de doenças, principalmente agora, com filas se formando para testes da Covid?

Com os remédios que ia adquirindo a cada visita, enchi primeiro uma prateleira, depois mais uma e em seguida uma terceira. Não satisfeito, esvaziei a despensa, deixando de fora tudo que tinha comprado no supermercado dias atrás.

Em seu lugar, aloquei os medicamentos, organizando-os por tipo, tamanho e idades. Os infantis de um lado e os adultos, do outro. Mas ainda faltava uma coisa. Me desfiz dos temperos, dos sacos plásticos e dos materiais de limpeza. Sentia que não precisava de nada disso. Do mesmo modo, joguei fora tudo que havia na geladeira, onde certamente eu poderia armazenar muitas caixas.

Também comecei a evitar outros lugares que não a farmácia, que havia dobrado de tamanho desde que se havia instalado na esquina de casa. Agora, era ainda mais charmosa e visualmente estridente, de maneira que, ao menos para mim, substituía plenamente o cinema e o teatro.

Como a visitasse todo dia, me dirigia aos funcionários pelo nome, mas logo tinha que me adaptar porque a rotatividade entre empregados nesse ramo é muito grande. Quando me acostumava ou mesmo me afeiçoava a um, era trocado por outro, mais jovem e cheio de uma energia que eu notava que desaparecia dos antigos trabalhadores.

Foi apenas em janeiro de 2059 que percebi que não lembrava mais do nome da minha mãe, seja por efeito dos remédios ou da idade. Tampouco convidava os irmãos para tomar café ou ir à livraria. Não sabia que gosto tinham as frutas frescas, os alimentos, a comida de casa. Eu conhecia unicamente esse terror luminoso sem o qual eu não sabia mais viver, como um vampiro às avessas.

Foto do Henrique Araújo

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