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Cai a máscara
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Cai a máscara

Tipo Crônica

Em breve estaremos todos na rua de volta, mas sem um item essencial com que já tinha me acostumado e mesmo afeiçoado. A máscara. Saberemos viver sem ela?

Nesses dois anos, acompanhou-nos a todo canto, foi uma companheira sem igual, suportando o hálito diário sem reclamar. Da manhã à noite, mascarados, respirando vapores que embaçavam os óculos, cantando ou falando sem sermos percebidos, bodejando ou rindo intimamente, de si para si, numa novena pessoal que apenas a máscara sabia.

Só a ela segredávamos, ciosa do que trazíamos ali nessa conversa mais muda que falada, uma cortina do que se encenava atrás do palco.

A máscara escondeu tanto quanto protegeu nesses tempos de pandemia. Foi um alívio tê-la em alguns momentos, quando pôr-se atrás do pano ajudava a aguentar o dia, deixando para os olhos a responsabilidade por toda expressão.

Olhos cansados de tanto falar, de tanto carregar a comunicação de uma vida por todos os meses de confinamento e trabalho remoto. Para tudo e para nada nos olhávamos mais no olho, e isso era um ganho, mas também uma perda de energia, uma atividade extenuante adivinhar nesse outro o que se passava tão somente pelo olhar.

É como uma página escrita cuja totalidade perdêssemos, tendo adiante apenas uma frase solta, pescada, o fragmento a partir do qual se desejava remontar o quebra-cabeças. O rosto como um texto de sinais e letras visíveis.

É isso que teremos de novo. Mas o texto que torna à rua é o mesmo que se confinou, o mesmo coberto, criptografado sob a máscara para que pudéssemos caminhar ao largo da doença?

Não sei, tenho minhas dúvidas se de agora em diante vamos examinar com diferença os detalhes do rosto, a covinha, a curva da boca, esse leve franzir do nariz, o arquear da sobrancelha, tudo harmoniosamente pretendendo dizer alguma coisa nessa miúda gramática, ou se já processamos a metade como se integral, o parcial como se inteiro.

As pessoas são outras se as vemos unicamente e só em direção aos olhos. Às vezes imaginamos uma outra boca que não a que se revela, ou um queixo anguloso e não quadrado, uma maçã mais pronunciada. O que a máscara velava era sempre uma surpresa quando finalmente à mostra.

É isso que volta, o hemisfério sul do rosto novamente exposto, a fração mascarada à luz mais uma vez, o que implica certa nudez da face, uma transparência inequívoca a que talvez já estivéssemos desabituados. Andarmos por aí de cara ao vento, e não mais vestidos do nariz para baixo.

Com a máscara a gente se punha a rir no anonimato, amparados por esse biombo que ajuda a disfarçar, e isso quem sabe justificasse mesmo a sua adoção em qualquer circunstância, sobretudo nessas que nos obrigam a interagir em excesso, festejos de toda espécie, casamentos, batizados e por aí vai.

Mas tudo passa, até a pandemia, e aqui estamos mais uma vez exibindo-nos em público com tudo que achamos que somos, escondendo sempre mais do que exibimos, mesmo sem máscara.

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