Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
Hoje é dia de feira de ciências, penso enquanto levas de meninos e meninas desfilam pela quadra da escola tentando equilibrar maquetes de papelão que reproduzem em versão diminuta a ideia de cidade que cultivam em casa.
Retornam para a sala de aula depois de uma semana às voltas com a tarefa de reconstruir um microuniverso fabricado com recipientes de creme dental, latas, algumas vasilhas e outros materiais de uso comum no dia a dia.
Nada deve ultrapassar o tamanho médio de uma bandeja, com 30 centímetros de largura por 40 cm de comprimento. Desafiadas a imaginar a vida numa métrica infinitamente menor, refazem os pontos cardeais de um itinerário afetivo e esboçam os limites de um cotidiano cujo horizonte ainda não aprenderam a enxergar por inteiro.
Alguns signos se repetem. Em quase todas, por exemplo, há pelo menos uma farmácia, à exceção de uma mais caprichada e realista, que tem duas, além de um McDonald's todo pintado de vermelho, em contraste com as paredes caiadas de branco do comércio ao redor.
Na esquina de um desses modelos, espicha-se uma cordilheira de prédios que fazem vizinhança com um lava-jato. Acho curioso que o estabelecimento se anuncie assim, como um lava-jato, as letras escritas em caixa alta, tudo nele tão avesso à inventividade da meninice.
Não um cinema, um parque de diversões ou um campo de futebol, mas um item banal da trama urbana, o lugar dedicado ao carro, elemento vital nesses projetos de metrópole e personagem em torno do qual o espaço se organiza, mesmo nos sonhos de criança.
É como se essas réplicas materializassem uma ordem do desejo alheia ao universo infantil. Nelas não há animais ou árvores, e seus modos de existir estão atrofiados, como se lhes tivessem dito: "vós que aqui entrais, abandonai toda a esperança".
O verso dantesco seguido da advertência: esta é a única cidade possível.
Essas aldeias invisíveis correspondem aos mapas cartográficos de pais e mães, habitantes do mundo dos adultos, mais preocupados em mimetizar a abundância de serviços ou marcações de pertencimento que situam esse recorte geográfico do que propriamente em abrir qualquer brecha para um ensaio de fantasia.
As coordenadas estão pré-moldadas: supermercados, sinais de trânsito e edifícios, caixotes miniaturizados formando os quebra-cabeças dentro dos quais, presume-se, essas famílias vivam. Quarteirões geminados, variações da mesma nota. Um mundo encolhido, não só em escala, mas também em potência.
Me pergunto se um observador mais atento quem sabe notasse uma marca de autoralidade nessas maquetes, um toque que as diferencie, aqui e ali uma tentativa de fuga do esquadro onde esses exercícios de fabulação se inscrevem, confinados por marcos já fornecidos como cercaduras de uma trajetória em estágio inicial.
Talvez, escondido em algum lugar, longe do olhar fiscalizador, uma criança tenha rabiscado um desenho mais estranho ou arquitetado uma construção assimétrica, desarmônica, até feia mesmo, incompatível com certa lógica cartesiana e competitiva, mas plena de sentido no âmbito da brincadeira que é alinhavar um futuro mais amplo e menos disciplinado do que esse miolo da cidade de sempre.
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