Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
Leio o discurso de Chico Buarque ao receber o Camões e tenho a impressão de que se trata menos de discurso e mais de um testemunho do tempo, ancorado no Brasil, mas não apenas este de agora ou de hoje. Um desabafo sem rebuscamento nem jogos, salpicado de uma galhardia muito ao feitio do compositor e escritor.
Uma fala que costura descendências: "o meu pai era paulista, meu avô pernambucano", em linha entre passado e futuro, como a restabelecer um fluxo antes interrompido. E, assim, retroagindo ao imenso Portugal, dando-se conta nessa caravana transatlântica de que os ramos negro e indígena da árvore foram se apagando na transmissão filial, numa operação deliberada de branqueamento da qual a violenta formação do país é resultado.
Em terras lusitanas, um Chico meio malandro, meio poeta, pilheriando sobre gravatas e outros termos acessórios do léxico político atual - deslocado pela graça da linguagem -, refaz os nossos acidentes mais recentes, as ladeiras e abismos pelos quais a nação rolou abaixo desde pelo menos 2018, as feridas e desditas.
Entre mesuras, o autor recebe a homenagem em nome dos artistas, humilhados e ofendidos nesses quatro anos, e brinca ao cogitar que o tenham esquecido e a honraria, expirado, perdida para sempre em alguma gaveta da memória, extraviada por decisão de uma qualquer autoridade.
Produzir esquecimento, esse foi o motor do governo de Jair Bolsonaro, que pôs a funcionar a maquinaria de reescrita do passado, numa grafia cuja função não era o registro, mas a rasura e o apagamento físico e simbólico "dessa gente" em torno da qual se elabora a literatura "buarquiana".
Não citado nominalmente, a pretexto de não se sujar (citá-lo seria dar-lhe sobrevida, conjurá-lo), o ex-mandatário participou da cerimônia como espectro, aludido por Chico naquele seu trato que combina discreta zombaria e elegância, exercício próprio de quem se acha à vontade no território da língua portuguesa, também personagem de suas canções e livros.
Um Chico brasileiro, a quem ele por si julga mais compositor popular que escritor, sobretudo em contraste com um Saramago ou um João Cabral, ambos ganhadores da mesma premiação e de cuja obra se pode dizer sem exagero que se fundava unicamente na palavra escrita.
Já perto do fim, numa intertextualidade jocosa, o "gajo" se refere à "rara fineza do ex-presidente" por ter se desincumbido de lhe outorgar o Camões em todo esse período, livrando-o de portar, no diploma, a sua assinatura, que estaria agora inscrita enquanto durasse o papel, a marca para sempre carregada como gesto infame.
E, para deixar evidente o alívio de não vê-lo materializado em algo que lhe dissesse respeito, o artista/autor recorre à própria obra poética em procura de tradução para o momento: "Você que inventou a tristeza/ ora, tenha a fineza/ de desinventar".
Por um segundo, naquele palco além-mar, é como se Chico desinventasse um certo Brasil que pretendeu matar o Brasil.
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