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O Brasil, a capivara e o Google
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

O Brasil, a capivara e o Google

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Tipo Crônica

Não há qualquer notícia no mundo sobre país, além do Brasil, cuja população esteja simultaneamente polarizada em torno de querelas envolvendo uma capivara e a regulação das redes sociais, ou seja, entre uma questão ambiental e outra tecnológica, uma amazônica e outra virtual.

Embora pareçam distantes, no entanto, os problemas se tocam, eu diria que até se confundem. Afinal, existe um lado para o qual o arcabouço legal há de se dobrar sempre ante o voluntarismo, de modo que não interessa se se trata de animal silvestre, tampouco o que estabelece a lei.

Nos dois casos, o da capivara e o do Google, essa cosmovisão alucinada se encontra na posição de quem supõe que o liberalismo sem amarras nem freios é a melhor forma de organização social, não por acaso projetando a sombra permanente de uma ameaça censória que nunca se cumpre, ambas representadas pelo Estado - num exemplo, o Ibama; noutro, o Ministério da Justiça, encarnando o espantalho do autoritarismo.

Os paladinos desse regime narcísico que fermenta nas redes de internet performam assim o papel de zeladores de uma moralidade senhorial na qual o capital pessoal, seja de megaempresas que submetem o mundo a seu capricho, seja de um youtuber fake-ribeirinho, se impõe a qualquer regramento em cujo horizonte esteja o bem-comum.

Não importa, então, que disseminadores de ódio invadam escolas e matem crianças, num processo de radicalização algorítmica para o qual as plataformas, ferozes na defesa de seus ganhos, fazem vista grossa, sob pretexto de que qualquer moderação é demasiado custosa.

Tudo isso para, no instante seguinte, colocar em prática uma blitzkrieg digital de customização de feeds de notícia, numa operação de guerra concertada que ajuda a entender como as "big techs" modelam o espaço público de maneira a extrair ganhos políticos e econômicos, mandando às favas qualquer ideia que ainda possa haver de neutralidade - uma cartada que lançam toda vez que estão sob pressão.

Tanto no episódio da "Filó" (nome com o qual a capivara se tornou conhecida) quanto no das "majors" do Vale do Silício, e isso certamente não é casual, sobressai o expediente das fake news, ora com a acusação - sem fundamento - de que o Ibama aplicava "vacinas vencidas" ao bicho apreendido, rapidamente espalhada numa certa microesfera; ora com a leviandade de políticos conservadores sustentando em suas contas que o projeto de lei 2630/2020 excluiria trechos da Bíblia das redes, uma afirmação sabidamente inverídica.

Daí a grita bolsonarista em torno da reivindicação do direito ao "livre-distorcer", amparada numa noção desvirtuada do que seja liberdade de expressão numa democracia, confundida deliberadamente com a permissão para incorrer em ilicitudes, mas sem constrangimentos jurídicos.

Sintomático ainda que, na esteira de uma tragédia indígena causada pelo garimpo e por outras atividades predatórias, a qual se seguiu a depredação das sedes dos Poderes da República, o "homem de bem" tenha apenas agora se sensibilizado com o falso problema da capivara, usando como ferramenta uma histeria salvacionista que é a mesma empregada para sair em defesa de outros animais vulneráveis do ecossistema financeiro global, tais como Google, Facebook, Instagram e Twitter.

Foto do Henrique Araújo

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