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Modos cearenses no restaurante
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Modos cearenses no restaurante

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Tipo Crônica

Me pergunto se há uma razão especial para que o restaurante tenha entre nós se convertido nessa arena de resolução violenta de impasses nas classes média e alta, como alguns casos mais recentes podem comprovar.

Dito de outro modo: por que os humores do nativo afloram à mesa, onde se bebe o melhor vinho e se debulha a boa conversa, onde figurões ou aspirantes ao PIB se refestelam, todos mais ou menos irmanados nesse sentimento de que habitam uma extensão da própria casa?

Era uma dúvida que passei a cultivar logo depois das cenas de um barraco dias atrás e dos escabrosos relatos em torno de outra confusão, esta de proporções pantagruélicas e cujos personagens talvez seja até desnecessário mencionar, visto que isso tudo já é sabido por todos desde os primeiros minutos do ocorrido, o que mais uma vez consagra o talento da terrinha para a fofoca.

Esses dois episódios, um de recorte popular e outro mais bem situado na hierarquia, mostram que, em termos de métrica civilizacional, endinheirados e remediados às vezes recorrem ao mesmo expediente, sobretudo quando lhes falta aquela mínima disposição para evitar o vale-tudo desabrido, concorrendo em cafonas demonstrações de macheza e virilidade.

Daí a ironia em que o restaurante, universo de mesuras e contenção gestual, de maneirismos e etiquetas, tenha assumido esse caráter de espaço cativo dos egos feridos de uma cearensidade cuja vocação para a disputa física confunde o doméstico e o público, não se deixando convencer por apelos de uma saudável conduta.

Lugar de acomodação social, sem necessariamente afrouxar os esquemas de diferenciação a partir dos quais todo mundo é rotulado e suas origens mapeadas, o restaurante é por excelência o ambiente no qual nenhuma disciplina se mascara por muito tempo, principalmente quando fabricada em viagens de consumo nos outlets mais próximos.

Logo às primeiras garrafas, os velhos hábitos se revelam, irreprimíveis, e cada um fala e se exprime na linguagem que lhe é própria, de maneira mais ou menos elegante, mais ou menos apropriada às codificações exigidas, mais ou menos à altura do estatuto que tal ou qual figura se atribui.

Ora, é nesses momentos que o homem de bem, mal contido na roupa "jiqui" de grã-fino improvisado, parte para as vias de fato, deixando de lado a indumentária de novo-rico para fazer vir à tona o personagem que genuinamente encarna no teatro da nossa alencarinidade em eterno estado de "belle époque".

Nesse grande tablado tropical, os angus, muito caroçudos, se consomem à vista de todos, seja no salão rococó onde ainda se confraterniza, seja no "after" rumoroso, transformado em tira-teima ou prova de valentia à semelhança dos desafios escolares, durante os quais os mais fortes sempre se impunham quando a aula acabava.

Para mim, não deixa de ser curioso e até triste, porém, que tudo isso se dê num restaurante, centro em torno do qual uma parte da vida se organiza e hoje verdadeira sucursal das delegacias plantonistas, aonde os convivas vão na sequência do cardápio apimentado, de digestão custosa e preço salgado.

 

Foto do Henrique Araújo

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