Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
Parece roteiro de uma série nova. Nela, super-ricos embarcam num submarino exclusivo para vistoriar as ruínas de outro portento da engenhosidade humana, o Titanic, afundado há mais de século e agora tornado peça de uma excursão para a qual é necessário investimento prévio na casa dos milhões.
Certos de que alargam as fronteiras da ciência e desafiam os limites da humanidade, os bilionários - um punhado de quatro ou cinco, não lembro - se acomodam no espaço diminuto dessa sonda ultramarina, um construto naval hipertecnológico cuja aura de onipotência deve ombrear com a do finado navio ao qual se dirigiam naquele momento e do qual resta uma ossada ferruginosa.
Eis, então, que o submarino desaparece misteriosamente. Importante dizer que o fato de que ele eventualmente seja encontrado hoje ou amanhã não altera o roteiro da história, que consiste, grosso modo, em mais uma dessas produções cinematográficas que tematizam o esfuziante universo do luxo.
Fetichizado, o modo de vida irrealista do 1% que dá as cartas no globo estampa séries, novelas e filmes. Boa parte sob viés crítico, e até jocoso e caricato, é verdade, mas numa chave de leitura com potencial limitado de transformação efetivo das regras do jogo, funcionando mais como um produto a partir do qual o novo ecossistema audiovisual (canais de streaming) extrai seus ganhos, enquanto os consumidores performam uma catarse que os purifica.
Qual catarse? A de se deliciar, ainda que só como hipótese, com as danações e a perfídia despudorada dos muito ricos, sua venalidade e arrogância, punidas com uma sucessão de eventos tragicômicos que trazem à superfície o mundo enlameado da classe mais alta, numa vingança dos 99% cuja rentabilidade empresas como a HBO têm sabido aproveitar.
Uma classe tão acima das demais, tão intocável e altaneira, que só a vimos muito recentemente figurada nas telas em cores tão fortes e depreciativas, mas sem jamais perder o charme e exercer certo fascínio.
Daí que o afundamento do submarino no Atlântico, esse que já foi o mar dos terrores ocidentais na expansão do capitalismo primitivo - lugar de monstros e outras fantasias -, seja acompanhado nas redes sociais como o capítulo de uma ficção a que se assiste sabendo-se previamente que seus personagens terão um desfecho infeliz, mas saboreando-se cada um dos momentos dessa narrativa.
Ao menos é assim que uma parte da audiência tem consumido as notícias sobre a abdução dessa cápsula de fibra de carbono e titânio, com uma única janela e guiada por um controle de videogame, características que só amplificam a sensação de que se trata de uma expedição virtualizada, desancorada do real, que permanece do lado de fora enquanto a tripulação VIP submerge 4 mil metros a bordo da "Titan", quase como refugiados de um planeta em chamas.
A nota irônica disso tudo é que o destino final desse safári marinho seja a visitação a um museu de destroços, perfeitamente simbolizados naquela carcaça enterrada sob a massa d'água, de uma versão mais ambiciosa e inconsequente do mesmo ímpeto exploratório que levou um grupo de eleitos até ali.
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