Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
É possível que a discussão sobre o São João que se espalhou pelas redes nos últimos dias tenha ido além da internet, chegando a públicos fora das plataformas para os quais é uma querela desimportante se os festejos juninos são legítimas manifestações de cultura nordestina ou não.
Mas há algo na conversa - debate? - entre as apresentadoras Astrid Fontenelle e Gabriela Prioli que convém examinar, um fundo que mais turva do que aclara, justamente porque parte de dois de lugares entre os quais existem mais pontos de contato do que divergências.
Contextualizando: Astrid se ressente de um São João que não corresponda ao típico, ou seja, ao modelo de cujos contornos ela tem uma ideia pré-concebida: uma festa tradicional, que preserva certas características de indumentária e musicalidade, culinária e ritualística.
Prioli, por seu lado, advoga que a frustração da colega com a dissonância entre projeção e realidade é algo restrito a uma subjetividade - no caso, a de Astrid - e que, portanto, a festa seguiria como sempre foi para as pessoas que gozam da festa, cujas demandas internas estariam contempladas com as atrações (axé, sertanejo etc.), sem se preocupar se estão operando solenemente para resguardar uma "tradição cultural".
Talvez sem notarem, ambas se aproximam: Astrid porque parece cultivar uma ideia de pureza - a festa como tipo ideal -, aonde ela iria a cada mês de junho para fruir uma experiência junina autêntica, não corrompida e maculada, uma modalidade que não existe em qualquer lugar fora do nosso quadro de aspirações.
Já Gabriela Prioli mergulha de cabeça no liberalismo mais individualista com base no qual se sente à vontade para prescrever que o gosto das pessoas é esse mesmo (uma festa junina sem atrações pretensamente juninas, repleta de axé ou funk) e que a forma da festa se define a partir do que os participantes querem da festa.
Num caso, predomina um tradicionalismo protecionista que supõe que o popular é sempre o lado mais frágil da história, adotando-se de pronto uma postura paternalista.
Noutro, o espontaneísmo do estilo, bem aos moldes do livre mercado, que postula que a resposta para todos os problemas é sempre individual e pela via do consumo, jamais coletiva, e que a questão do gosto - resumida a uma categoria a-histórica - está livre de quaisquer condicionamentos, como se em estado de natureza.
Tudo se passa como se não houvesse indústria, agro, prefeituras, megaempreendimentos avançando sobre contratos sem licitação e orçamentos, latifúndios em espaço musical em rádios e massificação sistemática de um gênero, emprego de verba para popularizar gestores de cidades pobres, caixa dois etc.
O gosto se basta. Afinal, é usado para justificar qualquer absurdo, como se o próprio gosto não fosse produzido, não fosse antecedido por referências sem as quais ele não se constituiria: da família à escola, da educação ao acesso a bens materiais e capitais culturais.
Sem isso, o gosto é esvaziado, tornado palavra-mágica que liquida qualquer saia-justa antes mesmo que aconteça, com a vantagem de fazer parecer muito inteligente quem quer que a maneje.
Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página
e clique no sino para receber notificações.
Esse conteúdo é de acesso exclusivo aos assinantes do OP+
Filmes, documentários, clube de descontos, reportagens, colunistas, jornal e muito mais
Conteúdo exclusivo para assinantes do OPOVO+. Já é assinante?
Entrar.
Estamos disponibilizando gratuitamente um conteúdo de acesso exclusivo de assinantes. Para mais colunas, vídeos e reportagens especiais como essas assine OPOVO +.