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Menos livrarias, mais farmácias
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Menos livrarias, mais farmácias

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Tipo Notícia

Talvez seja natural que numa cidade qualquer existam mais farmácias que livrarias, mas não tantas farmácias e tão poucas livrarias, num contraste que excede a redefinição dos parâmetros de comércio de rua, sugerindo até mesmo uma mutação vocacional: do simbólico ao medicamentoso, da praia ao antitérmico, da imaginação à privação de imaginário, do peixe na brasa ao coquetel de antibióticos.

Saem as estantes vazadas de títulos sobre os quais se passeia a vista à procura de todos e de nenhum, num modo distanciado de toda finalidade calculada de antemão; sai o mau-humor daquele livreiro mão de vaca cuja venda é sempre mediada por muxoxos e escaramuças para se dar bem, passando gato por lebre e fazendo do arranjo uma tortuosa transação com o cliente.

Entra a educação ostensiva e desconcertante dos atendentes farmacêuticos, à espera logo na porta, sorriso armado no rosto sob a frieza do ar-condicionado, secundados por exércitos de cartelas multicoloridas e suplementos proteicos, em alguns o sotaque como a chancelar que ali se entrega de fato o que é da ordem da autêntica demanda espiritual e física do nativo.

Afinal, a farmácia supre, alimenta, provê e repõe, quase como um novo templo aonde se vai à mercê de quadros aflitivos mais ou menos graves, diante dos quais o profissional fisga, entre tantos rótulos distribuídos nas prateleiras com tarjas e terminologias variadas, aquele que promete incidir mais diretamente sobre a raiz da mazela, seja real ou não, restituindo ao consumidor o prazer de existir.

Já a literatura, e dentro dela as livrarias e tudo que a habita por tabela, é o avesso: a falta, a lacuna e o silêncio; o labirinto e o “chiaroscuro”; certo gosto por implicar-se no alheio. Jamais será remédio para nada, embora haja sempre quem se veja como vendedor de soluções e respostas manufaturadas às intemperanças da vida mediante prescrição de romances, contos e poesias, vistos assim como agentes bem-dosados de uma saudável rotina entretida com o passar das horas.

Suspeito, contudo, que o livro não seja lá uma matéria que se preste tão bem a funcionar como esse princípio que desativa moléstia ou dissipe as dúvidas mais doídas, à semelhança do que faria um remedinho ordinário, ministrado a conta-gotas ou por cápsulas milagrosas cuja ingestão de oito em oito horas garantiria a eficácia da compra e o investimento capital.

A leitura e os livros são por natureza antiutilitários, nunca se impõem como atividade prática da qual se extrai ganho imediato, tal como substância com que se minora um acometimento indesejado, mesmo que operem pequenos fenômenos e revoluções na vida de qualquer um que já tenha sido salvo por uma obra.

Me queixo do descompasso da balança, da aridez da paisagem e da desertificação avançada numa metrópole assim, mas não comparo nem confundo alhos com bugalhos, sei da dependência estreita que ata o dia a dia de uma cidade disfuncional ao sortimento de drogas que a abastecem, legais e ilegais.

Apenas sinto, exatamente como uma enxaqueca, que a cada esquina se abram novas farmácias com suas fachadas luminosas e letreiros vistosos de doer nos olhos, enquanto as livrarias minguam, irremediavelmente esquecidas.

Foto do Henrique Araújo

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