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Ninguém contará essa história
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Ninguém contará essa história

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Tipo Crônica

Outro dia, talvez na semana passada, talvez um ano atrás, uma casa foi abaixo no centro de Fortaleza. Caiu no meio da manhã, pondo todos em sobressalto, ou ainda de madrugada, a cidade alheia ao gesto que se abate com sofreguidão e urgência?

Cedeu ao vento e à chuva, que cuidaram em levá-la ao chão, ou foi se degradando aos poucos, perdendo materialidade, desfazendo-se como pele morta, desgastando-se cada dia mais um bocado, pesando sobre as próprias pernas até ruir por incapacidade de continuar em pé?

As casas têm alguma história, mesmo quando ignoradas. Essa, por exemplo, era desabitada. Não havia tanto tempo, uma última família a desocupara, deixando o imóvel para trás depois de esboçar esse desejo de vida tantas vezes, no ato a falta de coragem, decisão sempre adiada. Até que, um dia, calharam de engolir a estrada.

Depois, o vazio, o vestígio do eco não ouvido de alguma palavra abafada num cômodo qualquer, na cozinha a mão suspensa, no quarto o corpo acamado, na sala quem sabe uma música se escutasse colocando-se o ouvido contra o frio da parede.

Súbito, a casa em silêncio, repleta de umidade e de uma massa residual sonora e tátil, que se acumulava pelos cantos. Nela, toda sorte de desenhos, imensos painéis esculpidos no reboco, uma capela de formas orgânicas, nuvens sanguíneas e alaranjadas, que acabaram por necrosar o cimento e por baixo a arquitetura, o esqueleto, a madeira, a areia, o pó.

Até que não restasse outra saída senão deixar-se despencar. Tudo perdido, esquecido, à exceção de uma muda de roupa ou de um porta-retrato, uma camisa ou um colchão que um homem tinha usado durante um período curto para escapar do tempo e da violência da rua.

As casas se constituem nesse acúmulo de rastros, de sombra e exposição, no telhado e sob o piso. Caso se revirem suas telhas ou se desfaçam seus tijolos, é possível que se descubram esses segredos mantidos a sete chaves que as famílias escondem como nos baús de antigamente, arrastados para o mais escuro e lá deixados para que um dia alguém os encontre e o que se passou finalmente seja de conhecimento.

Feito essas garrafas atiradas ao mar, extraviadas mas portando uma mensagem do além ou do aquém, do passado ou do porvir, do havido ou do que está por haver, porque na casa as camadas de tempo se sobrepõem, invariáveis. Maquinações de memória, brinquedos de futurar.

Com essa, porém, deu-se algo triste. Caiu sem que lhe contassem a história, mesmo que mal escrita ou de difícil legibilidade, sem grande enredo ou personagens, sem tragédias ou heroísmo. Ninguém a procurou depois, não houve comoção nem interesse, não se deu por sua falta.

Mas essa lacuna é uma fábula de escombros, detritos e fragmentos de lembrança desarranjados na calçada, misturados como cartas de um baralho que desmorona quando ao menor tremor dos dedos se instaura o desequilíbrio, expondo-se toda defasagem, toda fadiga, toda falha.

Que histórias essa casa contaria por meio de sua fratura?

Foto do Henrique Araújo

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