Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.
O ano é 2059, e de tanto pelejar com as farmácias sem poder de fato enfrentá-las, a cidade decide abraçar sua vocação de drugstore, deixando de lado turismo e a fé para se dedicar aos fármacos em tempo integral, numa recolocação jamais vista entre as capitais brasileiras.
Nesse futuro alternativo, ruas têm nomes de remédios e vias homenageiam os pioneiros da Grande Ocupação, que é como se referem os empresários mais experientes aos anos de 2010 a 2020, durante os quais as redes de drogarias alargaram seu domínio, engolindo vendas de açaís e tapiocarias e promovendo uma corrida ao ouro.
Nessa época, os artistas da bula comparavam-se frequentemente aos caubóis que desbravaram o oeste americano, enfrentando as intempéries a cada nova filial aberta numa esquina onde antes funcionava um café ou uma padaria ou frutificava um terreno com árvores e só.
Num regime comparado ao "plantation", ou seja, planificado e inteiramente voltado para a exportação de uma cultura, a do remédio, a cidade especializou-se de vez. Assim nasceram as hoje famosas avenidas Dragasil e "Pay Less", que cortam Fortaleza de ponta a ponta e onde funciona o maior corredor de farmácias do cone sul.
Simultaneamente, na orla da Capital surgiram as primeiras barracas de praia que não serviam tilápia frita ou pargo na telha, mas antialérgico e relaxante muscular em porções fartas acompanhadas de soro, enxaguante bucal ou energético.
A tradicional quinta do caranguejo, por sua vez, logo foi substituída pela "Quinta da Neosaldina", ocasião em que os moradores da cidade se encontravam para mitigar suas dores da única maneira que podiam. Em pouco tempo, a estátua de Iracema foi trocada pelo busto de uma caixa de tarja-preta, erguida por artistas da terra no mesmo ponto onde figurava a índia Guardiã.
Não demorou até que bairros inteiros passassem a receber nomes de produtos e compostos químicos, de modo que a metrópole, antes dividida em regionais, ganhou setores patrocinados, numa radicalização do name-righting.
Foi dessa maneira que apareceram bairros como o Dorflex, onde era a Grande Messejana, o Buscopan, que tomou o lugar da Barra do Ceará, e o Dipirona, ex-Meireles.
Aos poucos, a capital cearense consolidou-se como "farmacity", conceito criado por Juca Popular, um ex-entregador da rede Pay Less e agora coach que disputara as eleições municipais de 2056 e, em apenas três anos como prefeito, havia transformado radicalmente o perfil da loura desposada do sol, convertendo-a num polo de atração de pessoas necessitadas de cuidados medicamentosos que acorriam à cidade, numa romaria de depauperados semelhante à verificada muitos anos atrás, quando Padre Cícero ainda se espichava no horto de Juazeiro do Norte.
Agora, nem o Padim existia mais, nem Juazeiro. Em seus lugares, haviam construído um obelisco igualmente branco a quem eram atribuídos poderes miraculosos, sobretudo nos dias mais quentes. Deram-lhe o nome de Santo Hipoglós.
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