Logo O POVO+
As palmas de Cannes
Foto de Henrique Araújo
clique para exibir bio do colunista

Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

As palmas de Cannes

O exterior do Palais de Festival na 78ª edição do Festival de Cinema de Cannes (Foto: VALERY HACHE / AFP)
Foto: VALERY HACHE / AFP O exterior do Palais de Festival na 78ª edição do Festival de Cinema de Cannes

Eis um fenômeno que me intriga até hoje: as palmas de Cannes, o festival de cinema francês. Mais especificamente, a extensão dessas palmas, a insistência com que se mantêm no ar, sonoras, enfáticas, resistentes ao tempo, como uma instituição cuja existência ignorasse as transformações do mundo, tal como a igreja católica ou a vaia cearense.

O que querem dizer as palmas além de aplausos? Há um sentido não mediato, ou seja, que ultrapasse o banal do gesto? E por que 15 minutos ou 19 ou 40 minutos de palmas, a exemplo dos mais efusivamente ovacionados?

Embora não pareçam, não são perguntas fáceis de responder, sobretudo nestes tempos de estrelas e bonecos (aplaudindo), tempos de métricas de aferição de qualidade das obras e de juízo do gosto que se limitam a signos de rápida identificação.

Se vemos uma obra ou um prato ou um roteiro de viagem ou mesmo um motorista de aplicativo avaliado com cinco estrelas ou com uma, sabe-se de antemão que se trata de algo (no caso de um produto) ou de alguém que embute um grau mais elevado ou inferior de excelência para um grande número de pessoas.

O gosto médio, então, se expressa por meio dessa régua. Um parâmetro que se desloca para baixo ou para cima, a depender do humor da maioria, de seu veredicto social, que acaba por ter considerável ressonância pública (Rotten Tomatoes, por exemplo).

Em comum, essas ferramentas guardam entre si o desejo tácito de materializarem a tarefa crítica, que é muitas vezes substituída nos meios de imprensa e virtuais por caracteres infantilizados de propagação viral e transmissão simplificada.

E as palmas? Penso que estão noutra categoria, a do elogio constrangido pela presença e pelo efeito de contágio que a conduta do outro exerce sobre a de um terceiro. A isso se acrescente, claro, o fato de que raramente um filme mereça mais que dois minutos de palmas, e tem-se o superlativo sucesso da ação reiterada que se multiplica muito mais por vergonha (todos continuam a aplaudir, menos eu) do que por reconhecimento dos méritos intrínsecos de qualquer longa-metragem.

Ora, não há diretor ou roteiro ou estreia ou brilho artístico de ator ou atriz prodigiosos que justifiquem mais que um punhado de palmas, findas as quais a obra (no conjunto ou em partes), se boa de fato, continuará a percutir, gerando uma leitura para fora do momento da exibição, que é sempre performática - todos os atores no ato, mais equipe técnica, numa tensão relativamente ensaiada.

Mas o que se vê é o contrário: filmes que, tão logo se esgotam as palmas entusiasmadas de quatro minutos ou cinco, caem no esquecimento, tais como livros de cinco estrelas sem força literária ou restaurantes badalados cujo encantamento é produzido por encomenda para o Instagram.

Dito isso, tudo leva a crer que as palmas seguirão existindo enquanto houver gente disposta a ficar em pé esquentando as mãos pelo tempo de uma vida unicamente para simular o duplo prestígio: o do objeto do aplauso e o de quem o concede.

Porque, e esse talvez seja o pulo do gato, as palmas (presenciais ou virtuais) excessivamente duradouras fisgam a atenção das plateias, concedendo-se um protagonismo egoico que chega a marginalizar a obra em questão - ali está o grupo que passou quase um quarto de hora aplaudindo incansavelmente aquele filme chatíssimo.

Não deixa de ser uma autocelebração, claro, uma palma não para o outro, mas para si. Um reconhecimento das virtudes mais de quem consagra o produto, tão injustificada e longamente aplaudido, do que do consagrado.

 

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?