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O escambo da língua
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Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

O escambo da língua

Traduzindo: é como se Deleuze fosse lido ao vivo pelos personagens do Garras da Patrulha
Tipo Crônica

Tudo agora é imersão, experiência e escuta ativa, palavreado que se replica feito patologia, uma frieira no léxico que vai se espalhando pelas línguas, amiudando-se na fala do acadêmico e do bodegueiro e finalmente morrendo na boca do político, esse cemitério de expressões e usina do clichê.

Tome-se a escuta, por exemplo, que já não é mais nem suficientemente escuta, mas necessariamente ativa, ou seja, não basta escutar, mas estar ativamente empenhado em ouvir, no que soa como uma redundância dessas que vão passando mais por preguiça de escutarmos de fato com atenção aquilo que sai da boca, dos outros e das nossas.

A quem lhe pergunte, o deputado ou o vereador desavisado já não diz que consultou a população sobre tal ou qual assunto de somenos importância, mas que conduziu um processo de escuta ativa das demandas mal formuladas desses corpos desejantes que formam o povo e que, ao cabo dessa litania, pode extrair indicações potentes para as entregas que deseja fazer no tempo do mandato.

Traduzindo: é como se Deleuze fosse lido ao vivo pelos personagens do Garras da Patrulha.

O mesmo se dá com a experiência. Ninguém se contenta mais em consumir um produto, contratar um serviço, almoçar num self-service, esperar um carro de aplicativo ou chupar um picolé sem que cada uma dessas ações esteja investida de uma aura experiencial sui generis, capaz de torná-la especial, singular, irrepetível, embora o caráter ordinário dessas tarefas seja a marca que as define.

Daí toda sorte de empreendimentos imobiliários, por exemplo, cuja "raison d'être" é levar ao nível quintessencial a experiência de moradia num cubículo de 50 metros quadrados de costas para o sol, sem projeto de arborização e sem acústica adequada para acomodar 160 unidades num espaço onde mal caberiam 80.

Há quem diga que isso é a precarização das condições de habitabilidade de uma classe média aviltada nas metrópoles do tardo-capitalismo - e há quem chame de "experiência" mesmo, sem ruborizar.

Tudo isso deságua no que me parece a pior das expressões, a mais ameaçadora e mais detestável: a imersão, e já explico por quê. Última Coca-Cola dessa cidade linguística, o termo designa o suprassumo das operações de despiste do cliente quando se pretende vender gato por lebre.

Ou seja, quando não se tem nada em mãos, quando o valor da mercadoria se exauriu e já não resta qualquer coisa a oferecer em troca do dinheiro e da atenção do usuário/cliente, o que sobra é a expectativa de imersão como projeto de vida escapista.

Nessas horas, qualquer quiosque de shopping se encontra autorizado a prometer uma travessia sensória inigualável por meio de experiências interativas em um ambiente cuidadosamente preparado para assegurar uma imersão total - mais a garantia de que os vendedores estarão à disposição, com a escuta ativa em dia, no caso de o comprador eventualmente se sentir feito de abestado.

Foto do Henrique Araújo

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