Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.
Foto: Samuel Setubal
Banheiro público do Parque Raquel de Queiroz fica fechado durante as manhãs devido à ausência de profissionais terceirizados
Dos fundos do prédio, ouço do banheiro alguém dizer, quase aos berros: "Temgente". Cartão de visitas do que é demasiadamente humano, trata-se de um tipo de advertência e constatação que não pretende constatar nada, exceto que o local está ocupado.
"Tem gente", contudo, é bem mais do que supõe nossa vã filosofia. É uma dessas frases curiosas, particulares, lapidadas por anos de uso irrefletido, sedimentada no calcário da inconsciência, empregada em ocasiões muito específicas, tal como quando se está num WC e é preciso explicar a quem bate na porta que, ali dentro, há uma pessoa às voltas com sabe-se lá que humores do próprio corpo, tranquila ou tensa, feliz ou pesarosa.
Em seu sumo, porém, há a compreensão tácita de que quem diz "temgente" é de fato gente, ou seja, um humano, e não uma IA projetada para responder desse jeito, e que, do outro lado, seu interlocutor também é, presumidamente, gente.
Se há uma certeza, então, é a de que se está lidando com alguém de carne e osso, já que "tem gente" no recinto, coisa que, até onde se saiba, nenhuma máquina tem sido ainda capaz de imitar, nem a entonação ou o estado de espírito de quem se sai com essa tirada, nem as circunstâncias às vezes desesperadas nas quais a sentença é proferida.
Espécie de "captcha" da vida real, essa combinação de palavras (tem gente) funciona como um teste de Turing informal para distinguir computadores de humanos. E por que isso é importante? Por duas razões.
Primeiro, porque essa diferença tende progressivamente a diminuir, até se apagar por completo. Não agora, nem depois de amanhã, mas em algum momento do futuro próximo.
Segundo: disso deriva que vai ser cada vez mais raro poder falar com alguém concreto (inclusive no banheiro), organicamente falando, autêntico no sentido de que se é um animal e não um robô, um aglomerado de células dotado daquele substrato especial que faz da gente, gente.
Por isso "tem gente" é uma frase em risco de extinção, sob ameaça de esvaziamento de seu sentido. Em breve, essa certeza cristalina que a cerca em situações banais do cotidiano, como esse diálogo da latrina, estará ausente, e ao escutá-la por aí talvez nos perguntemos se quem a usa é gente como a gente ou "gente" como outra coisa - um golem, um autômato, uma criação inumana.
Ou uma inteligência supertreinada, por exemplo, com capacidade infinita de aprendizado maquínico, um constructo em tudo indistinguível do humano, dele copiando inclusive as falhas.
Os modos de falar, os erros de grafia e de linguagem, as fragilidades e os terrores, as dúvidas existenciais e as potências, além do pendor artístico - quem sabe até os movimentos peristálticos do trato intestinal, vai saber.
Nada disso seria mais um traço distintivo do homo sapiens, nem mesmo quando ouvíssemos o clássico "tem gente" ecoando das quatro paredes azulejadas do banheiro como validação de que estamos diante de um semelhante, e não de um gadget de Elon Musk.
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