Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.
Monomaníaco, ainda penso nesse PDF da fofoca do pessoal da corrida (chamemos assim) sem tê-lo lido de fato, sem haver nada que me vincule ao grupo que constitui o núcleo dos personagens, sem simpatias nem antipatias.
Tampouco sem supor que se trata apenas de fofoca, ou seja, sem me dar por satisfeito depois de ter passado a vista nuns trechos que me pareceram estranhamente sintomáticos de uma temporalidade, isto é, do zeitgeist, e já explico por quê.
Fofocar é ato natural, fisiológico até, mas o que se nota ali é outra coisa, uma certa permissividade, um liberou geral do mau-caratismo, uma explicitação da zona cinzenta na qual um certo recorte de classe chafurda, um odor miasmático se desprendendo do exercício do poder. É questão menos moral e mais política, eu diria sem medo de errar.
Diria ainda que o que se escreve e se registra no grupo de WhatsApp só pode ser dito hoje, mesmo no privado, porque houve um antes cuja função era exatamente afrouxar as amarras para esse tipo de conteúdo, fazendo-o soar como trivial quando não é, ainda que compartilhado entre as quatro paredes de uma comunidade virtual.
Entendam que não quero pontificar sobre valores, não é isso, mas acho que, e apenas acho, a coisa toda cheira a algo que não poderia ser banalizado, e até entendo que não esteja sendo, mas pelas razões erradas.
Os termos, os alvos, sabem? As palavras empregadas para depreciar, o modo como se associam a origem social e uma desenvoltura nesse exercício do achincalhe, o capital econômico e o de fala, a autoridade desses discursos e a própria constituição de um espaço no qual as coisas ditas poderiam ser ditas sem que houvesse uma sanção, um veredito social de condenação, enfim, uma reprimenda pública porque, afinal, estavam todos protegidos e se protegendo.
E o gozo, sim, o gozo que a verbalização mobiliza. Dizer tudo sem revés, dizer tudo e contornar os interditos e depois encontrar acolhimento nesse escárnio que redunda numa mutualidade prazerosa, que se multiplica entre iguais.
Enfim, eu li e pensei: esse PDF vazado foi vazado a troco de quê? Quem vazou, o que tinha em mente? E como reagiram aqueles cujas conversas foram expostas?
Houve vergonha de fato ou apenas constrangimento porque o que é da esfera pessoal e privada se tornou imprevistamente público e acessível a qualquer um que saiba procurar, como alguém flagrado no pulo do gato?
Há mais ali, tanto pela repercussão, pelo "exposed" e seu consumo como produto, como mercadoria, como uma série local com personagens locais, quanto pela natureza em si do que era motivo de compartilhamento de laços entre as pessoas que faziam parte do grupo.
O que as ligava para além do esporte e da corrida, por exemplo? Era essa posição a partir da qual se projetavam e na qual julgando seus pares, rindo de todos, pela qual voltavam no dia seguinte para escarnecer de gente com quem dividiam atividades e a quem consideravam como amigos, quem sabe?
É um mistério ainda, e é tão fascinante quanto olhar para uma estrutura se desfazendo, cedendo aos poucos, ou um animal sendo engolido por um predador ou um prédio em vias de desabar. Talvez aí esteja o segredo do frenesi em torno da circulação do PDF, algo mais intrigante do que o PDF em si: é como uma pornografia social, autoficcional, uma escrita de si mais autêntica do que qualquer literatura.
Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página
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