Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.
As duas cenas se conectam como partes do mesmo filme: o gari assassinado e o entregador espancado num intervalo de poucos dias. Um mais para longe, outro entre nós mesmos, mas sem se confundir com um de nós, pelo contrário, os laços se estabelecem com os agressores, os sem-rostos, os sem-nome, aqueles cuja prisão depende de uma série de contingências especialíssimas, sem as quais seguem livres.
A morte como emblema de classe, sempre. Até a comoção é mediada por uma regra que não lhe permite ir muito longe. Lamentar, sim, mas não em demasia, não em excesso, não a ponto de parecer que se chora como se chorasse um crime familiar, consanguíneo, um ataque à fortaleza dos iguais.
Logo passa. Não se conhece nota de repúdio de prefeito nem publicação de governador vociferando contra o barbarismo. Nada sugere que o homem que atacou o motoboy, ainda incógnito, estará à vista nos próximos dias ou em um ano ou dois, submetido ao escrutínio público, tendo de se haver com a repercussão do ato de covardia, à mercê de sei lá que legislação que usualmente não se aplica a gente do seu tipo.
Porque gente do seu tipo se desloca noutra esfera: a dos não situados, a dos não nomeados, a dos que se conservam distantes do alcance de toda punibilidade, a dos que se filmam em pedidos de desculpas simulando arrependimento e ensaiando um "storytelling" de aperfeiçoamento e aprendizado pessoal.
Resta o amargor de impotência, então, que se avoluma como um caroço quando a imagem do rosto inchado do motoqueiro mirrado é compartilhada por ele mesmo, sentado na maca do hospital à espera de atendimento. A vítima se fotografa e envia para alguém, quer ver o estrago dos pontapés desferidos contra ela por uma ninharia, por não ceder ao imperativo hierárquico.
Por simplesmente não estar em condições sequer de negociar a forma de pagamento que empregara para transacionar suas vendas, já que também depende de uma plataforma, que, por seu turno, é como o agressor, isto é, está diluída numa cadeia de microrrelações apenas latentes, sem jamais aceitar que o trabalhador se apresente como ente vinculado ou alguém de cujos cuidados deveria estar a cargo.
E aí o gari morto na rua, assim, displicentemente, por obra da pulsão de matar, uma vocação social dos endinheirados, um esporte já tão bem descrito pela crônica sociológica de formação do Brasil desde muito.
A violência recreativa, domingueira. Um MMA da vida real no qual os mais fortes se impunham aos mais fracos de maneiras diversas, inclusive esta: privando-os da vida. Porque sim.
O gari morto por arma de fogo enquanto trabalhava e o entregador esmurrado na calçada constituem a prova de que se convive relativamente bem com um certo grau de perversidade à porta de casa, desde que não se comprometam os serviços (a coleta de lixo siga normalmente e o tempo de espera do pedido não atrase além do razoável).
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