Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.
A ponte velha se tornou um problema para a Cidade. Primeiro porque é velha, e Fortaleza detesta velharias. Segundo porque não presta, mas está fincada no chão. Suas estruturas afundam na areia da praia como garras de um animal antediluviano, de modo que não se pode simplesmente remover tudo e rebolar no mato, como o gentio faria com qualquer outra coisa sem uso, do vidro do xampu à TV enguiçada, passando por sofá, guarda-roupa e itens do vestuário.
Mas com a ponte, não. Nem cai nem desaba, a condenada. Mantém-se empenada, deteriorada, teimosa. Tombando sem tombar, fazendo par com o Mara Hope e o farol (velho), o caco de navio encalhado que a olha de longe há mais de quatro décadas, num casamento sem palavra no qual partilham histórias da ruína da metrópole - não distante dali, a fotografia do buraco onde antes havia o São Pedro.
Eis uma cidade como nenhuma outra. Nela, o tecido urbano vai se reinventando a golpes de superprédios e condomínios "smart", alargando as dimensões da capital nessa nova corrida para o leste à procura do que já não há: espaço, vista de qualidade, um quadro aberto, uma perspectiva do olhar desimpedida por tantos espigões, os horizontais e os verticais.
Daí a paulatina substituição de seus signos mais antigos (nem sempre bonitos ou valorosos) por uma estética não apenas nova, mas cafona e estridente, facilmente replicada em qualquer lugar, feita por IA, com padrões copiados aqui e ali, numa justaposição de peças sem encaixe.
Essa Fortaleza "romerobritizada" é o verdadeiro museu do amanhã, um sítio arqueológico em permanente construção onde no futuro antropólogos de todas as partes do mundo buscarão, desconcertados, os rastros de uma coletividade em colapso.
Esse processo deságua na ponte velha, diante da qual arquitetos e engenheiros locais se postam em pleno meio-dia, o vento de setembro açoitando suas pernas e braços, o sol bronzeando ombros e costas. Estão genuinamente intrigados como se em face de uma esfinge cabocla.
Perguntam-se o que diabos a ponte é realmente: mero vestígio de uma infraestrutura sem valor afetivo; monólito extraterreno que se inclinou permanentemente e agora resiste à remoção; peça arquitetônica que foi ficando, como uma mesa, cadeira ou parte da louça da família esquecida na gaveta?
Ou um registro vivo da corrosão do tempo, camadas e mais camadas de ferro e concreto devoradas pelo sal, uma instalação sem autoria que atesta esse imperativo do aterramento que é a marca do nativo?
Ou não seria nada disso? E, na hipótese de não ser nada, o que ainda seria? Uma plataforma de pousos noturnos? Uma colônia de férias para enjeitados da sociedade? Uma passarela de saltos ornamentais sem técnica olímpica, mas com grande apuro visual? Um Beach Park de baixa renda?
Especialistas discutem nos palácios e legislativos, entre acomodados e atentos às oportunidades que o poder sempre abre quando bem explorado, mas sem chegar a nenhum consenso quanto à resposta para a questão de fundo: afinal, derrubá-la, e a que custo, ou mantê-la de pé, e a que custo?
Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página
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