Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.
Inspirado no livro da moda, e dizer que um livro está na moda já pressupõe viés de classe num País de não leitores, pensei no que seriam as coisas de pobre. Seu ethos e marcas, suas especificidades e ritualísticas, suas vestimentas e modos de comer, habitar e viajar.
Enfim, o conjunto mais ou menos heterogêneo de características (gostos, preferências, escolhas) que ajudam a montar a imagem mental que se tem do pobre no Brasil, no Nordeste, no Ceará.
Tal empreitada antropológica iria requerer que o pesquisador deixasse de lado essa verdadeira tara da arte atual (cinema, televisão e mesmo a literatura) por retratar o 1% dos mais endinheirados, atraída sabe-se lá pelo quê - talvez pelas zonas cinzentas de moralidade de uma casta de privilegiados, como se o pobre fosse, além de desprovido materialmente, um quadro sem forma e fundo que não se prestasse a dramaticidades à altura das ambições estéticas contemporâneas.
Como se fosse pobre também em valores, sentimentos e complexidade subjetiva, pobre de protagonismo e fala, pobre como Fabiano era pobre.
E isso não é qualquer coisa. Digo, colocar-se no mundo da pobreza, ter com ele um contato assíduo, sentindo-se deslocado não na ampla sala de espera do grã-fino na mansão paulistana/carioca ou num hotel chique numa praia nordestina (porque a região é sempre destituída de toda particularidade, surgindo na boca dos ricos e dos remediados do Sul/Sudeste como uma totalidade sem nuance, uma projeção idílica que combina rusticidade e primitivismo com uma natureza exuberante que compensa a nossa penúria econômica).
Mas ouso pensar que ninguém se interessaria por isso. Ninguém despejaria dinheiro nesse produto fadado ao tédio das horas sem charme. Nenhum canal de TV ou streaming, nenhuma corporação que financiasse uma série cujo roteiro seria acompanhar um pobre no seu dia a dia fazendo coisas tipicamente de pobre, sendo pobre ao natural, sem mediações, sem improvisações, sem máscaras.
Nenhum cientista social, literato ou biógrafo de plantão para colher seus depoimentos de pobre e escrever pobremente uma história, com parcos recursos, depois vertida em livro, que seria então consumido como farinha nas comunidades de um centro financeiro de pobre.
Levas de viventes (não apenas das Alagoas) que dedicariam parte de sua renda já corroída para comprar o volume de capa lustrosa, vazada num sépia amarelecido, a cor que os pobres têm nas novelas da Globo. Pobres como fósseis humanos, eternamente suados e com esse acento na fala de um Nordeste imaginário que é de todos e de ninguém.
No miolo desse enredo estaria um pobre ideal-típico com sua família exemplarmente pobre às voltas com os dilemas de pobres, como decidir entre pagar uma conta de energia ou uma de água, uma de gás ou comprar a mistura do dia, consultar uma criança num posto de saúde, matricular um filho numa escola dominada por facção rival e por aí vai.
Pobres sem nome, sem filiação nem pedigree, sem Neto ou Filho atestando a operação de transmissão de capital de geração em geração. Apenas uns pobres encenando sua pobreza, tão autênticos quanto a palavra respeito na propaganda do banco, e diante dos quais o antropólogo teria inevitavelmente de fingir naturalidade.
Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página
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