Logo O POVO+
Telecatch
Foto de Henrique Araújo
clique para exibir bio do colunista

Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

Telecatch

Estou com hiperfoco no formato 30 x 1 ou 40 x 1, a depender da proposta e de quem se aventure a encarar dezenas de oponentes num MMA ideacional, com franca trocação de palavras e frases de efeito cujo objetivo é vencer os adversários somente pela potência de seus golpes retóricos
e sequências argumentativas.

Apenas nos últimos dias, assisti a um influenciador de esquerda de corpo escultural e a uma produtora de conteúdo adulto que atende pelo nome de um dos personagens de seriados mais populares
da TV brasileira.

Cada qual no seu canto do tablado, eles manejavam recursos cognitivos próprios na tarefa de se esquivar de uma pletora de ataques situados ideologicamente
noutro espectro.

Ambos, contudo, tinham algo em comum: pareciam mais interessados no que se passava fora do ringue do que propriamente lá dentro, e isso me levou a desconfiar de que a intenção desse tipo de entretenimento é menos a contenda entre "boxeurs", por exemplo, e mais a performatividade de uma inteligência que simula o confronto
com o dissenso.

Sim, trata-se uma espécie de telecatch para as novas gerações. Ou seja, uma contradição ensaiada, simulacro de dissidência que pretende fazer as vezes de uma abertura ao contrário e à alteridade da opinião alheia, mas, no fundo, está mais para uma pedagogia coreografada - uma masturbação do mesmo.

Quero entender, porém, se estamos diante de uma onda, algo como um viral de baixo teor de comicidade ou humor involuntário, do tipo "lideranças de mercado" se autoentrevistando para portais de notícias inexistentes ou pastores-mirins gesticulando em mesacasts fantasmas como grandes influenciadores.

O que talvez acabe servindo como metáfora para estes tempos de IA (de)generativa, isto é, será que não estaríamos todos em todo lugar ao mesmo tempo tentando também preencher lacunas e compensar deficiências perorando seja entre iguais, seja para o abismo?

Me interessa essa teatralidade da vida por contaminação digital, essa dimensão fake das relações tolerada e consumida socialmente. Afinal, até que ponto a fantasia da troca (para usar termo caro à geração Z) está sendo levada a limites nunca d'antes imaginados, comprometendo mesmo o que se supunha que fosse genuinamente verdadeiro, que é o ódio e esses afetos negativos típicos da rede?

Eu não saberia responder. E, se soubesse, não entregaria o ouro tão fácil e rapidamente assim, mas faria eu mesmo meu podcast, no qual cadeiras sem ninguém sentado me entrevistariam por horas e horas, falsamente interessadas no meu conteúdo, por sua vez igualmente postiço e elaborado com auxílio do ChatGPT, com o qual eu ganharia engajamento e monetizaria chutes e socos no ar, como os heróis mascarados que eu via pela televisão
quando criança.

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?