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Mandem áudio
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Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

Mandem áudio

Henrique Araújo: "Áudios de cinco segundos, de três ou de dez, áudios tartamudeantes, onomatopaicos, áudios com balbucios numa frequência inaudível, áudios gaguejados, vencidos, derrotados"
Tipo Crônica
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Foto ilustrativa par aa coluna de Henrique Araújo (Foto: Divulgação/ Rawpixel)
Foto: Divulgação/ Rawpixel Foto ilustrativa par aa coluna de Henrique Araújo

Sim, mandem áudio, evitem escrever, prefiram a pessoalidade da fala à impessoalidade da escrita, permitam que seu interlocutor perceba as tonalidades da sua voz, as suas ranhuras e os ruídos, a aflição e a hesitação, o medo e a ansiedade só transmitidos pela elocução oral.

Mandem áudio, por favor, sobretudo quando for totalmente desnecessário, nessas ocasiões banais, abrindo a geladeira ou assoando o nariz, dentro do banheiro ou na parada do ônibus, no carro ou a pé, áudios para tudo e para nada.

Áudios de cinco segundos, de três ou de dez, áudios tartamudeantes, onomatopaicos, áudios com balbucios numa frequência inaudível, áudios gaguejados, vencidos, derrotados.

Áudios de súplica e de explicação, de fúria e som, de gozo e ardor.

Não se acanhem nem caiam nessa lorota de que o áudio é inconveniente, de que o áudio envelheceu, de que o escrito matou o áudio, de que a IA é a bola da vez.

Não é, o áudio é sempre adequado, nunca se atrasa nem chega antes, nunca é inoportuno ou constrangedor, o áudio é o que é, tautologicamente falando, autojustificável e justificante.

Há o áudio do pensamento alto e solto, por exemplo, um ensaio sonoro que vai se costurando no ar e assumindo uma forma informe à medida que o tempo passa.

Um áudio de gargalhada, nada mais, nada menos, só o riso registrado da pessoa que talvez até pretendesse dizer algo, mas se quedou impotente ante a força maior da graça de uma piada sequer contada, mas já risível, e talvez risível apenas para ela, mas quem se importa?

Um áudio de DR, cheio de tensão, modulado, cuspido, com altos e baixos, começa torpedeando e termina implorando porque sim, por favor, não faça isso, não agora, não hoje, não comigo, áudios sucessivos de experiência de quase morte.

Um áudio enigmático, impeditivo, riscado, sublinhado, telegrafado.

Áudio extraviado, errado, errante, vacilante, incompetente e soluçante.

Um áudio sussurrado, soprado, áudio de quem conta uma conversa encurtando a distância, como se dissesse: agora chega aqui que preciso lhe dizer uma coisa realmente importante, e então se põe a falar abobrinhas.

Áudios de trabalho, verdadeiros tutoriais para a vida laboral, registrando toda sorte de procedimentos e tarefas a cumprir num prazo x, durante o qual você terá esta ou aquela opção, desde que faça esta ou aquela escolha e execute este ou aquele comando do jeito certo.

Áudios autobiográficos, autoficcionais, autofágicos, autossabotados.

Áudios depreciativos e celebratórios, vaidosos e amargurados, encharcados de uma disposição para ir ou ficar.

Áudios endereçados de si para si, contendo recomendações e conselhos e alertando para algum aspecto da rotina de hoje ou de amanhã, recados jogados numa garrafa ao mar da internet para que esse eu do futuro possa se valer de um alerta desse eu passado, numa comunicação interpessoal e atemporal.

Gosto de áudios não tanto porque posso acelerar a mensagem, já que nunca acelero, uma vez que tenho déficit de escuta e preciso ouvir as sílabas sendo pronunciadas em toda a sua morfologia. Nem porque tenho especial predileção pela afetividade da emissão audível.

Gosto porque gosto, porque carregam mais informação do que qualquer texto escrito, sempre à mercê de mil e um mecanismos e ferramentas de desinteligência artificial e de outras melhorias tais que falseiam a expressão vocabular.

E gosto também porque há sempre a possiblidade de não ouvi-los.

Foto do Henrique Araújo

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