Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.
Henrique Araújo: "Agora mesmo na universidade, por exemplo, há como que uma caça às bruxas cujo alvo é a ia, por todo lado a confusão que se instalou em torno da questão: bani-la ou usá-la com sabedoria?"
Foto: KIRILL KUDRYAVTSEV / AFP
Foto ilustrativa para crônica de Henrique Araújo
Aonde vou não se fala de outra coisa, "ia" pra cá, "ia" pra lá, e me permitam de agora em diante grafar em minúsculas e sem aspas para não ter de apertar os botões de caixa alta sempre que escrever ia, que, desse modo, acaba se confundindo com uma forma verbal.
O passado de ir: a inteligência conjugada no pretérito imperfeito do indicativo, mas podendo também auxiliar em construções com gerúndio, como em "eu ia desistindo de escrever esta crônica".
Mas o fastio existe, não é invenção. É uma sensação de afogamento cognitivo, uma inflação sígnica, um transbordamento ou superexposição, todas essas tentativas de apanhar o fenômeno enquanto ele se desenrola ainda.
Agora mesmo na universidade, por exemplo, há como que uma caça às bruxas cujo alvo é a ia, por todo lado a confusão que se instalou em torno da questão: bani-la ou usá-la com sabedoria? Diante da incerteza, resolveram enxovalhar a ia, de maneira que os estudantes têm de baixar uma série de tutoriais para aprender como manejar programas aos quais tudo que escrevermos estará submetido.
Vamos terceirizar para a máquina a tarefa de dizer se o que fazemos foi ou não obra da máquina. Então se a máquina disser que uma tese ou dissertação detém 60 ou 70% de conteúdo plagiado, talvez seja o caso de orar para aquele santo da internet ou das redes.
Eu mesmo, admito, tenho receio de perguntar a uma ia se meu trabalho foi fraudado, quanto dele há de original e quanto de cópia involuntária, e logo descobrir que tudo que fiz durante esses quase seis anos, dois de mestrado e outros quatro de doutorado, pode se resumir a um punhado de caracteres derivados de uma inteligência coletiva cuja autoria apenas a ia é capaz de atestar.
E eu teria de confiar plenamente na ia, teria de aceitar o que diz, teria de colocar o rabo entre as pernas e refazer tudo ou deixar de lado esse esforço, teria de desconfiar de minhas próprias atitudes, revistando meus métodos de pesquisa e minhas fontes, e as fontes das minhas fontes, e assim sucessivamente.
Porque o erro nunca é individual, mas coletivo, e se a ia diz que meu trabalho guarda semelhança com outros já publicados, é porque esses que me antecederam não apenas se apoiaram nos ombros de gigantes, mas também espiaram por sob sua vista para saber o que faziam e assim chegar mais rapidamente aos resultados.
E que consequências isso traria?
Falo da premissa tacitamente aceita de que a ia, que opera a partir de tudo que fazemos e dissemos, ou seja, como um coletor do que já foi feito e dito, seja então alçada à condição de instância de validação da originalidade de trabalhos para os quais ela não teria em verdade ferramentas para avaliar.
Isto é, como a ia pode ser preditiva ou mesmo eficaz para mensurar o grau de inventividade de uma obra se tudo que faz é processar informações que circulam e a partir delas estabelecer conexões, muitas delas de consistência duvidosa, sendo frequentemente imprecisa e ocasionalmente delirante?
Cético da ia, resistente à digitalização do pensamento, começo a me convencer de que o erro será em algum momento o grande motor da distinção entre humano e máquina.
Sim, o erro, o ruído, o sujo, o vestígio da manualidade, a pegada do rascunho, tudo que atesta que houve emprego de mão de obra humana para a execução de uma tarefa ou produção de um item, seja ele um penico, uma bomba atômica ou um artigo acadêmico.
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