Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.
Henrique Araújo: "As escolas também, visto que há menos vocábulos no idioma nacional para serem ensinados, o que não quer dizer falta de expressividade"
Foto: Adobe Stock
Imagem ilustrativa para crônica de Henrique Araújo
Rico manancial de plasticidade morfossintática da língua portuguesa, o dialeto cientificamente denominado de "luciobrasileirismo" é velho conhecido dos cearenses. A criançada, os porteiros, os jornalistas, os delegados de polícia, os escritores, os cobradores de ônibus: todos folgam em celebrá-lo.
As escolas também, visto que há menos vocábulos no idioma nacional para serem ensinados, o que não quer dizer falta de expressividade. Exemplo: "Fevereiro não tem Carnaval, março todavia compensa, meu bloco vai sair". O tour de force do fraseado é explosivo. Um sax pode ser escutado ao longe. Ganha-se na economia de cartilhas discentes e no tempo da professorinha das séries iniciais.
Em "luciobrasileiro", uma sentença trivialíssima como "Eu quero meter ferro quente na floresta do Aeroporto", falsamente atribuída a um certo vereador e apresentada em cearensês vulgar, logo se metamorfoseia em algo do tipo: "Boca de sacola comendo verde". Por sua vez, a frase "Chiquinho danado no pé do macaco" é alquimicamente convertida em "glutão fartou-se".
Sem conspurcar a dança lógica da última flor do Lácio, a língua de Safadão e Bilac, de Clodoaldo e Fernando Catatau, os enunciados das composições da mãe nativa ganham frescor e cadência lusitanos. Donde a flagrante potência da modalidade, que se presta tanto ao registro escrito quanto ao falado (ver as antigas manhãs de domingo na televisão cearense).
Tudo alinhavado num receituário simples, que emula as melhores lições de vida do colunismo social: eliminem-se os supérfluos, exalte-se o ossobuco da existência. Fixe-se no maneirismo sem densidade da casca da pitomba.
Notórios exemplos de construções refogadas no luciobrasileirismo podem vencer de um só golpe quaisquer hesitações que ainda restem sobre sua eficiência como ramificação emergente do português moderníssimo. Retirados das páginas do O POVO, onde seu cultor, a respeitadíssima figura de Lúcio Brasileiro, labuta incansavelmente há tanto tempo que seria de todo indelicado perguntar, os torneios de língua constituem raras pepitas do belo escrever e do sofisticado pensar.
As luzes desse insidioso e poético versejar florescem em todos os campos da vida. Na etiqueta gastronômica: "Baco & Feijão: não emplaca servir vinho branco com feijoada, e ainda menos, champanha".
No âmbito social: "Preciso no Estoril, reformado pela prefeita Luizianne Lins, que brindou Iracema com aquela beira-mar de cidade grande". Na reflexão embevecida de nostalgia: "Quando iniciei minha coluna, a vida estava nos clubes, tanto que, na primeira lista dos Dez Mais, quatro eram presidentes, Ideal, Náutico, Country e Maguary, embora um só bastante merecedor, Manoel Gentil Porto".
Entretanto, mesmo gozando de virtuosa aceitação entre os círculos bem pensantes do meu e do seu Ceará, a abundante beleza gramatical e sintática do luciobrasileirismo parece não convencer um grupo renitente e demodè de professores de cursinho do Enem. Organizados sob a sugestiva denominação de CAMÕES AGAINS'T THE MACHINE, esses docentes palavrosos pretendem cassar todo o gracejo e influência alcançados por esse raro dialeto sociobanal nas esferas da alta e da baixa sociedade.
Para tanto, articulam-se com sindicatos, centrais trabalhistas e grêmios estudantis vinculados a partidos de esquerda e direita, cuja ideologia repele prontamente qualquer demonstrativo de genialidade e beleza.
Arautos do obscurantismo, mal sabem que, noutra ponta desse fio de ourivesaria, uma contra-ação vem sendo gestada. E os resultados já aparecem. Parlamentares alencarinos conseguiram aprovar um emendão ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa que visa a incluir entre as regras as muitas propostas do vasto idioma do luciobrasilerismo. Paco rejubila-se.
Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página
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