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Terminando o ano
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Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

Terminando o ano

Henrique Araújo: "Ano do boom e do colapso da IA ano da promessa de um futuro edênico no qual o virtual e o real se equivalem, ano da tiktokzação do sofrimento e da grande diáspora das redes"
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Labubu, tendência de 2025 (Foto: Reprodução/Pop Mart)
Foto: Reprodução/Pop Mart Labubu, tendência de 2025

Esse foi o ano dos bebês reborn e dos labubus, dos dispositivos de substituição e transferência de afeto, da desafetação e do dar de ombros para o desfile acelerado da vida.

Ano do boom e do colapso da IA ano da promessa de um futuro edênico no qual o virtual e o real se equivalem, ano da tiktokzação do sofrimento e da grande diáspora das redes.

Ano da fuga das galinhas, dos filmes de terror e do Neymar, ano da prisão e da romantização da prisão dos famosos e do ex-presidente em sua eterna crise de soluço.

Ano de caçar palavras, de formar com as palavras caçadas uma frase, de restituir sentido ao quadro no qual as palavras antes em estado de natureza compunham um painel sem ordenamento, palavras postas em susto.

Ano do vazamento de grandes perguntas e também das pequenas, ano da sorte de adivinhar os temas existenciais e comezinhos sobre os quais milhões e milhões sonham em escrever na hora da prova.

Ano do mecanismo da sorte, da estrutura secreta que produz o futuro, ano da predição das horas, da medição circunstanciada dos acertos e dos erros, da parametrização da felicidade.

Ano do ostracismo do panetone e da reabilitação do ovo, ano da graça e da desgraça, ano do recolhimento meditabundo e do desbunde desavergonhado, ano da ioga e do forró-raiz, ano do fim das listas e da volta de certo gosto pelas coisas sem categoria.

Ano das desescritas do eu, da arte do baixo ventre, da grafia do corpo sem corpo, enfim, ano de toda sorte de golpe mercadológico para vender mais no País que menos lê.

Ano da literatura como performance, dos romances que curam, apaziguando as dores da alma, ano da literatura como remédio e dos escritores como oráculos do bem-viver.

Ano das bibliotecas cenográficas e das estantes como personagens, ano de procurar nos livros resposta para as agonias do espírito.

Foi o ano de se enganar, de supor que haja qualquer salvação, nos livros ou fora deles. Ano de procurar e não achar ou de encontrar sem ter procurado, de errar o caminho sem querer e de desejar mais o erro que o acerto.

Esse foi seguramente o ano de fechar perfis e privar as contas, de postar menos, de sair nas fotos com o braço encobrindo o rosto, de granular a imagem ao ponto da saturação, de evitar o excesso e praticar o desaparecimento programado em vez da obsolescência, de reduzir os seguidores e bloquear os conteúdos incômodos.

Ano de contornar toda negatividade, de operar 24/7 na positividade e de patologizar tudo que se possa encaixotar como contrariedade.

Ano das tecnologias d'antanho, ano da Cybershot empoeirada, do PS1, das brincadeiras de antigamente, ano do medo da morte, ano do mesmo sonho com o bairro da infância.

Ano da reanalogização dos cotidianos, ano do grande recuo, ano do longo retorno, ano da queda e da travessia.

Ano em que a "força silenciosa do possível" se impôs como regra, reconduzindo os destinos a um porto-seguro ainda que não houvesse porto, tampouco um que fosse seguro, e no fundo ele não tenha jamais acreditado nessa ideia de destino.

Um ano em que ver demorou mais que o habitual, em que se deparou com os quadros nas paredes e com os filmes nas telas e os livros nas prateleiras e resolveu de bom grado examinar conscienciosamente cada detalhe da superfície e cada ângulo da existência tão banal de tudo, como se tentasse flagrar o envelhecimento em tempo real.

 

Foto do Henrique Araújo

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