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A intimidade do cearense
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

A intimidade do cearense

Tipo Opinião

O cearense é antes de tudo um íntimo, um familiar, alguém que mesmo na rua carrega consigo a sala e a cozinha. Bastam dois minutos para que se avizinhe e mergulhe no alheio mesmo sem convite.

Entre num Uber, por exemplo. Uma corrida de sete minutos. Deslocamento breve entre dois pontos A e B. No máximo três semáforos e pronto. Tudo pago no cartão. Sem necessidade de trocas mercantis concretas. Mas o que acontece? Um sutil interrogatório que começa quase sempre com uma observação desinteressada sobre o clima na cidade (frio se está chovendo e quente se parou de ventar), passa pelas condições do asfalto (esburacado, de péssima qualidade), encaminha-se para a "indústria da multa" (o cearense que é cearense de fato sempre acredita em alguma modalidade de indústria cuja finalidade é prejudicá-lo) e deságua em algum aspecto da política atual, seja local ou nacional - o prefeito que não anda na periferia, o governador que não cuida da segurança, o presidente que só fala besteira.

Mas, claro, não sem antes investigar algum mínimo assunto de natureza pessoal, tais como: quanto ganha? Trabalha que horas? Gasta quanto com gasolina? Tem filho? O pai é vivo? Qual o signo? A irmã estuda o quê? É feliz? O cearense, in natura, é como um gerador randômico de perguntas, uma máquina de formular dúvidas biográficas, uma usina de curiosidades domésticas, um ser em constante estado de vendedor de cartões da C&A, pronto a atacar seja em que lugar for e em qualquer circunstância. É a representação máxima da "indústria da intimidade" - se se pode chamá-la assim.

Não sei se faz por mal, se essa aproximação forçada é mero cacoete ou falta de jeito, como se, pela aspereza da terra e escassez de recursos, o nativo se pusesse por instinto em modalidade social, de modo a sempre estabelecer amizades, condição da qual resulta aqui e ali uma vantagem - um amigo que ajuda com documentação, outro que avia uma multa no Detran, um terceiro que aluga equipamento de som para aniversário, um que facilita com uma conta na Caixa etc. Ou seja, coisas práticas que atenuam adversidades mediante um arranjo no centro do qual está o coleguismo adquirido no cotidiano.

E, por essa razão, não se pode desperdiçar nenhuma oportunidade. A seu lado pode estar alguém que vai indicá-lo para uma vaga numa empresa, um amigo de rolê, um crush, um sócio ou simplesmente um cara que estudou com o primo da sua mãe quando vocês moravam num bairro distante do qual você não lembra mais nada.

E aí entra outro ponto dessa intimidade que transborda e asfixia ao mesmo tempo: no fundo, é como se cada cearense sentisse que conhecesse o outro - daí a afeição imediata, desmesurada e irrestrita.

Afinal, a gente veio tangida do interior, as gerações de filhos da capital são parcas, duas ou três, no máximo, de maneira que as chances de que o camarada ao lado na fila do banco seja um parente são não apenas razoáveis, mas muito grandes. Então não custa perguntar.

Foi assim que o motorista de um transporte por aplicativo quis saber se eu era um Carlos que tinha morado na Parquelândia entre 2005 e 2007 e pegava o ônibus na parada do Instituto dos Cegos às terças e quintas.

Eu disse que não, não era, e seguimos viagem.

 

Foto do Henrique Araújo

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