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Pedindo a Anitta
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Pedindo a Anitta

Acordei mais cedo do que de costume e, ao deixar minha filha na escola, ouvi um popular falar baixinho, a voz engrolada de quem se acha ainda sonolento. Cheguei mais perto, pus a mão em concha pra abafar o ruído dos carros. E era isso mesmo. Às 7h50min da manhã de uma terça-feira de outubro de 2019, aquele brasileiro estava pedindo a Anitta.

Pedia muito, na verdade. Embora com discrição, sons e gestos faziam crer que pedir a Anitta era necessidade básica, questão humanitária até, mais importante do que o café com pão do desjejum. Quis ajudá-lo, mas não sabia como. O homem explicou que, desde o sábado passado, não sabia pronunciar outras palavras além daquelas. Queria a Anitta, urgentemente. Meu senhor, o Brasil inteiro quer, brinquei. Ele ficou sério. Como me afastasse, agarrou meu braço e sibilou: você tem de pedir Anitta.

Fui embora encafifado. Meia hora depois, meu telefone toca. Era o pai. Ficou calado uns dez segundos antes de começar a conversa, que se resumia a uma única sentença. O pai também estava pedindo a Anitta. Fui do estupor ao medo em poucos minutos. Aos 58 anos, o velho enlouquecera. O pai jurou que não, que estava tudo bem com o juízo. Na verdade, nunca se sentira tão bem. Para provar que continuava com a cabeça no lugar, repetiu a data de aniversário dos três filhos. Mas, em seguida, voltou à carga. Era importante pedir a Anitta, contou num sussurro conspirador. Pai, o que é isso? Uma senha? Apenas vá até a rua e peça Anitta aos berros, como se estivesse no Rock in Rio e isso fosse a coisa mais importante a se fazer, ele me orientou.

Claro que isso não fazia o menor sentido, e eu permaneci em casa, agora bebericando a xícara de café que eu mesmo havia preparado. A campainha toca, um tormento estridente que ricocheteia nas paredes. Derramo café no chão da cozinha. Era Jorge, o porteiro. Estava parado diante da soleira da porta. Achei que pudesse estar doente e quisesse explicar por que não tinha recolhido o lixo, mas não era nada disso. Seu Carlos, bom dia, ele começou, gaguejante. Estou pedindo permissão aos moradores... Pra ajudar com o pedido... Com pedido de quê, Jorge? Pra pedir a Anitta, balbuciou.

Eu ri de nervoso. Assinei o documento autorizando que o porteiro pedisse Anitta, o papa Francisco, a Marília Mendonça e quem mais achasse conveniente pedir. Jorge sorriu, e depois girou nos calcanhares, descendo os três lances de escada num trote alegre. Sentei no sofá.

Aturdido, digitei no Google: "surto Brasil pedindo Anitta". Apareceram uns vídeos de um festival de música qualquer, nos quais não cliquei. Uma notícia sobre o ex-namorado da cantora de funk, que fora visto aos beijos com uma garota no fim de semana. Um caso de ciúme envolvendo uma atriz cujo rosto já estampara capas de caderno antigamente. E só.

Repousado no tampo da mesa da sala, meu telefone emite um barulhinho intermitente. Uma chamada. Duas. Três. Quatro. Pensei em ignorar, mas, pela insistência, só podia ser uma pessoa.

Oi, mãe, atendi apreensivo. E, um tantinho mal-humorado: já sei o que a senhora vai dizer. E o que é, filho?, disse num muxoxo. Mãe, por favor, diga logo. Dizer o quê, meu filho? Que a senhora ligou pra pedir a Anitta. Que Anitta? Eu liguei pra lhe passar aquela receita de pudim que você tinha pedido, mas, se isso é uma emergência, eu posso deixar pra lá e pedir a Anitta. Melhor: vou te mandar um áudio de cinco minutos só pedindo a Anitta, tá bem? Tchau. E desligou na minha cara.

Foto do Henrique Araújo

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