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Pois bem
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Pois bem

Das expressões de fala corrente, dessas que usamos sem ver nem pra quê, feito uma peça de roupa mais querida de que nos servimos no dia a dia, uma das que mais gosto é "pois bem", que empregarei sem aspas de agora em diante, como se tirasse a chinela antes de entrar na casa alheia. Pois bem, explico por quê.

É uma marca forte de oralidade, de história que se conta e cujo fio da meada não se perde nunca. Pois bem. Quem faz uso dela tem sempre em mente que o outro dispõe de pelo menos meia hora para ouvi-lo. Pois bem. Logo, está-se diante de interlocutor que acompanha tudo, detalhe por detalhe, e cada lance se lhe afigura como uma novela radiofônica, com os personagens se alternando e suas ações lentamente convergindo para um clímax que ainda não se sabe qual é, mas cujo véu vai se descobrindo a pouco e pouco. Pois bem.

Quando se topa com esse tipo de conversa gostosa, o ouvinte sabe que não é historinha ligeira, que se narre em dois minutos sem recorrer ao cacoete linguístico, que tem a função aí de pedir para que o espectador não se vexe ainda porque logo estaremos ao final desse longo e acidentado fio, quando tudo será esclarecido. Pois bem.

E quanto mais os personagens são conhecidos (um vizinho, um ex da amiga, um paquera ou crush, uma tia), tanto mais o relato ganha ares de agonia, adiando o desfecho tão esperado e mergulhando o ouvinte em suspensão, de modo que o artifício agora se voltando contra o narrador, tamanha a impaciência que produz como efeito colateral. Pois bem.

Acontece, por exemplo, de a pessoa que escuta não ter disposição ou saco mesmo para tanto "pois bem", como é o meu caso, e já ir arregalando os olhos ou disfarçando o bocejo na metade da história, a atenção subitamente sequestrada para as coisas mais desimportantes do mundo, como uma panela sem lavar na pia de casa ou a matrícula do curso de Francês que só começa ano que vem, quando não para um detalhe no rosto de quem conta a longa epopeia cotidiana (uma remela ou espinha mais proeminente, como sói de suceder). Pois bem.

Mas, para seu (meu) desespero, esse amigo ou amiga, a despeito dos seus (meus) sinais de impaciência cada vez mais evidentes, continua a fazer largo uso do "pois bem", engatando fatos em outros fatos, entrando em digressões que se bifurcam e descaminhos que distanciam cada vez mais a narrativa do seu fim, como um George R. R. Martin tropical. Chamo essa condição de "Síndrome da Netflix". Pois bem.

Esses amigos são como uma plataforma de streaming em forma de gente, espichando enredos simples, como uma ida à farmácia ou uma noite na balada, em séries com três temporadas, cada uma com oito episódios de 53 minutos, muitos spin-offs e séries derivadas do tronco principal da história. Pois bem.

Mas, afora isso, como disse no começo, gosto à beça da expressão "pois bem", que me faz lembrar da minha avó quando se punha a desfiar memórias de muito antigamente. Pois bem.

A avó era a única pessoa do mundo que eu conhecia que usava bem o "pois bem", permitindo-se a construção no máximo três vezes e sempre com uma precisão incrível. Quando ela a utilizava, portanto, as duas palavras de fato queriam dizer o que diziam, fosse lá o que fosse, e eu sentia que estava diante de uma dessas novelas em que o sobrenatural podia dar as caras a qualquer momento. Pois bem.

Ocorre que quase sempre nada acontecia, e o "pois bem" da vó era, como qualquer outro, apenas uma maneira de prender a audiência dos netos até o fim, quando ela se levantava da cadeira de balanço comprado no galego e anunciava solenemente que ia se estirar na rede pra dormir. Pois bem.

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

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