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Cicatrizes
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Cicatrizes

Tipo Crônica

Monstro olhou-se no espelho, a barba maior do que de costume. Aparou com tesoura, errou novamente e fez um buraco onde deveria haver uma curva suave.

Monstro contrariou-se, mas, como ainda eram nove horas da manhã, deixou pra lá. Era cedo para pequenas chateações, sobretudo uma que não teria importância ao longo do dia, salvo se se considerasse que o aborrecimento causado por uma incisão desastrada nos pelos do rosto provocaria uma cadeia de reações infinitesimais.

Naquele dia, Monstro havia se demorado na cama, não queria levantar. Reconstituíra os eventos do dia anterior, uma sucessão de pequenos acidentes cujo sentido geral não compreendia. Apelara a fios soltos, costurara umas pontas a outras na esperança de que, atando e desatando, conseguiria formar uma rede e nela enxergar uma imagem que o levasse a sair de um labirinto, que apontasse uma porta e depois dela um lugar de chegada, qualquer que fosse ele. Um quarto aonde iria no final da tarde pra descansar de tudo, uma fenda no tempo, uma máquina de transporte.

Lusco-fusco, assim podia chamar-se a forma que se desenhava no teto do quarto de casa. Embora fosse cedo ainda, eram figuras oblíquas, tais como as que resultam dessa luz enviesada que o Sol lança sobre as pessoas e as coisas quando vai morrendo aos poucos. Uma luz que lambe a superfície em gesto de despedida.

Músculos repuxados nas pernas e nas costas depois de uma volta de bicicleta. Sem sexo havia três dias. Monstro tinha morrido. Não eram nem dez horas, mas ele tinha morrido.

A campainha do apartamento soa alto. Batem na porta. Alguém chama. Não era mais pensamento nem retrospecto, mas o agora se desenrolando diante dele. Cada instante requerendo uma resposta. Foi até a porta, abriu-a. Era Maurício, o porteiro. Disse bom dia, recebeu o pacote e trancou-a à chave novamente.

É uma caixa enviada pelos Correios. Dentro uns poucos livros que tinha pedido havia duas semanas. Histórias pelas quais não tinha agora o menor interesse.

Monstro deposita a caixa sobre a mesa e vai até o banheiro. Volta-se ao espelho mais uma vez. A falha na barba. O rosto bronzeado, as entradas na cabeça, os olhos estreitos e a boca como uma linha feita a lápis, levemente arqueada como a apreender cacos de tragédia no dia a dia.

Orelhas pequenas, sobrancelhas grossas, óculos frágeis e antigos para enxergar melhor o que talvez fosse o caso de não enxergar de modo algum. Ombros baixos, braços finos e queimados.

Monstro tira a roupa. O pau está lá, levemente inclinado para o lado esquerdo. É escuro, tem um sinal como o que carrega no canto esquerdo do queixo. Pelos em redor, a virilha branca demarcando o uso recente do biquíni.

Coxas mais fortes do que há três semanas, canelas finas, pés longos e cavados. Dedos compridos. Unhas por cortar. Pelos sobre cada um dos dedos. Dedos em cada um dos pés. Dois pés. Duas pernas. Duas mãos, dois braços. Umbigo fundo e escuro. Cicatrizes no braço e no saco. Cicatrizes no joelho e na mão esquerda. Cicatrizes nas costas e no pé direito. Todas relacionadas a algum incidente num tempo já tão remoto.

Monstro tinha uma aparência banal de homem. Mas era Monstro.

Foto do Henrique Araújo

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