Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
Que fazer na quarentena? A dúvida incomodava, não apenas porque escancarava a condição privilegiada de quem se permite elencar atividades e distrações num momento de pandemia, mas também porque de fato carregava um sentido honesto: que fazer? Eu não sabia.
Apesar das dificuldades, e cansado de ler jornais e ver TV com imagens de italianos bonachões manejando acordeons de suas casas instaladas em paisagens do século XVI enquanto bebericam vinho, tentei puxar um coro de Raça Negra na varanda de casa.
Ninguém respondeu, exceto um gato no telhado da casa ao lado, que miou de volta, como se compadecido ante o esforço de criar uma sociabilidade no meio desse quadro de excepcionalidade a que o vírus empurrou a todos, impondo a distância como regra de convívio e fazendo do mundo um grande programa de fim de semana de adolescentes com dificuldade de relacionamento.
Eu estava cansado, portanto, irritado e cansado. Irritado, cansado e profundamente desconfiado diante de tudo que estava acontecendo. Logo explico.
Era domingo. Depois de decorar toda a etiqueta sanitária e certo de que agia pelo bem comum, fui ao supermercado, admito que mais por curiosidade do que por necessidade, o que não me orgulha. Esperava um cenário de Walking Dead, com levas de pessoas sobraçando pilhas de alimento e se acotovelando pelas últimas carreiras de Cream Cracker de Fortaleza, mas encontrei casais desconfiados e donas de casa com PETs pescando maquinalmente um queijo brie da seção de frios. Se havia um apocalipse global, ele certamente não estava ali, entre as gôndolas de vinhos na parte mais nobre do CEP da cidade.
Voltei pra casa mais tranquilo. Tão logo liguei o aparelho de televisão, no entanto, a imagem de zumbis em horda atacando humanos solapou qualquer hipótese de serenidade. Alguns portavam cartazes, outros pediam fechamento do Congresso e do Supremo. Então percebi que a epidemia era coisa séria, as pessoas de fato estavam mesmerizadas por um torpor coletivo cujo agente transmissor era ninguém menos que o presidente da República (música de suspense).
Eu já tinha visto esse filme. É da década de 1970. Nele, um fungo se apodera do juízo dos terráqueos, infiltrando-se na cúpula do governo e dominando seus corpos, que passam a operar como fantoches. Ora, ora, tudo aquilo estava acontecendo naquele exato momento, ao mesmo tempo, diante dos nossos olhos, sem que ninguém desse pela gravidade.
O presidente agia como um avatar manipulado por entidade biologicamente extraterrestre, cuidando em contaminar a quem encontrasse pela frente, espalhando o elemento patógeno e coletivizando a doença de que era portador.
Ele não era mais o chefe de uma nação às voltas com uma doença infecciosa de origem duvidosa. Era um ET com a língua presa e deficiência de leitura, e seu objetivo, dominar os outros poderes, obrigando a todos a usar uma camisa falsificada do Brasil e chinela de dedo, fazendo do mau gosto uma enfermidade ainda mais grave do que a dengue e a chicungunha juntas.
Afogueado, fiz um resumo de minha teoria e espalhei pelo Whatsapp, a fim de atingir o máximo de usuários, mas obtive apenas resmungos e muxoxos. Ainda mais desconfiado, saí dos grupos do condomínio, e agora espero o momento em que todos os vizinhos virão juntos bater a minha porta no meio da madrugada.
Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página
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