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Aquele sábado
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É jornalista, professora da rede pública, escritora de cartas e de livros não publicados.

Aquele sábado

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Amo sábados. São os dias da possibilidade e da alegria. De fazer almoço diferente, de ir ao cinema, de acordar sem preocupação. Sábados são, de longe, meus dias favoritos. Mas existiu um sábado especial. 9 de março de 2019. A jornada começou antes. Na sexta-feira, 8 de março, embarquei para cruzar o oceano de avião. Minha primeira viagem internacional.

Já havia saído do Ceará muitas e muitas vezes. Para o Rio de Janeiro, São Paulo e outros lugares onde o português é falado e tenho nacionalidade. Nunca havia, entretanto, visto o mundo dos outros povos. E, por isso, eu estava morrendo de medo. Medo mesmo. De ficar perdida, de ser confundida com uma traficante internacional de drogas, de acharem uma arma na minha mala. Mas eu desembarquei na Alemanha. E era um lindo sábado de frio.

Eu não saberia descrever o tamanho da felicidade. Achava tudo bonito, tudo organizado. Olhava para os prédios com ar de criança embasbacada. Até aparecer o primeiro perrengue na ida até o hotel. Confundi algumas palavras no idioma alemão e, por pouco, não fui parar no outro lado da cidade. Cheguei ao meu destino, entretanto, com o pensamento exaurido e mortalmente assombrada pelo sistema de transporte público germânico.

Que coisa complexa! Pra que tanto giro? Pra que tanta linha diferente? O meu coração batia miudinho. Era apenas o primeiro dia de viagem e eu quase me metera em problemas. "Isso é tão Isabel Costa...", vão dizer os meus amigos. Sim, pois nunca falei sobre esse sábado para ninguém. A quem perguntou, eu apenas disse que tudo correu em paz, sem percalços.

O resultado é que eu não queria sair do hotel, mas a fome bateu. Pensei na solução mais prática: um Mcdonalds. Fui olhando pelo mapa e parecia viável. O percurso de ônibus demoraria dez minutos e custaria três euros. O medo de me perder apertou novamente. Preferi, então, fazer o trajeto à pé nos trinta e cinco minutos que o Google Maps estipulava.

A caminhada levou mais de duas horas. Eu andava e andava. Parava na intenção de olhar no celular e conferir o trajeto. A direção era a certa, a bolinha azul se movia. Nos primeiros quarteirões, via lojas abertas e algumas pessoas passando. Depois, os viventes começaram a ficar mais raros. Também não havia carros ou ônibus. Era apenas eu.

Comecei a pensar nos caminhos que me levaram para, em uma tarde de sábado, estar caminhando sozinha em Frankfurt. Como havia ido parar tão longe de casa? Andando em um país onde não dominava a língua e não conhecia ninguém. Duvidei do mapa, duvidei de mim. Não aparecia um ser humano nas janelas, nos semáforos. Depois, o caminho foi ficando mais íngreme e menos doméstico. Passava por galpões de fábricas, locais cheios de guindastes.

Era como se estivesse em um filme. O medo me sufocava. Eu poderia morrer. Ser sequestrada. Ter os órgãos arrancados. Muitas subidas e descidas depois, cheguei até uma ponte. O frio cortando os lábios, o vento arrancando o gorro. Fui andando aquela extensão toda, exausta. Não lembro de já ter passado tanto tempo caminhando só. Aquele foi um dos momentos nos quais eu mais me conectei comigo. Era eu, o vento, os passos, o pensamento. Mais do que qualquer atração turística ou museu grã-fino, foi andando sozinha em uma zona industrial de Frankfurt que eu percebi que ando comigo, vivo comigo, estou comigo. É como diz Angélica Freitas: "e quem quiser dormir comigo vai ter que dormir do lado".

 

Foto do Isabel Costa

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