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Underneath my clothes
Foto de Isabel Costa
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É jornalista, professora da rede pública, escritora de cartas e de livros não publicados.

Underneath my clothes

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Mamãe é uma das melhores costureiras que já pisaram no planeta. Ela não acredita, mas, a verdade, é que ninguém no meu mundo consegue tecer uma camisa de forma tão perfeita quanto a Lene. Na minha casa sempre teve máquina, tecido, agulha... Fui criada em meio aos retalhos - fazendo os trajes das bonecas, gastando linha à toa, bordando em ponto cruz. Para ela, a facilidade de criar uma peça é assustadora. Em um momento temos um pedaço de pano e, minutos depois, voilà, já será uma blusa, uma saia...

A simplicidade para o acesso fez meu guarda-roupa ser farto ao longo da vida, mas, nem sempre, eu usei peças apropriadas para a minha idade. O que falar de uma menina de doze anos trajando uma calça bege de alfaiataria? Como lidar com as blusas de lese na adolescência? Para além do bullying, eu entendi cedo que as roupas seriam a minha distinção.

A vestimenta, no meu entendimento, possui duas dimensões: a afetiva e a informacional. É pelas roupas que eu comunico se estou triste, empolgada, abatida. Agora, enquanto escrevo, uso minha calça preta comprada por módicos trinta reais na feira de São Bento, um sapato perky verde e uma blusa alusiva à Semana do Meio Ambiente de Cascavel. Quem olhar vai dizer: "essa menina tá mal".

Com o tempo e a maturidade, meu acervo ficou menos recheado e mais utilitário. É por isso que tenho uma quantidade menor de peças a cada ano, mas sei contar a história de cada uma. Hoje, basicamente, todas as minhas roupas foram costuradas por mamãe, garimpadas em desapegos ou fruto de aquisições de marcas cearenses. Algumas são tão especiais e frágeis - pelo tempo e pelo número de usos - que não é mais possível submeter à lavagem na máquina. Tem que ser na mão mesmo com sabão líquido e amaciante Downy - pois quem ama investe no cuidado.

Certas roupas me acompanharam em momentos singulares. A camisa social feita de toque de seda bordô, por exemplo. Foi costurada lá por 2011, quando a cor ainda nem levava esse nome… É uma das coisas mais perfeitas que já tocaram a minha pele e foi usando que recebi o meu primeiro Prêmio Gandhi. Até hoje, sempre que coloco acompanhada pela calça jeans surrada e pelos sapatos sociais eu recebo elogios.

Outras roupas carregam tanto da minha história que mais parecem fotografias das minhas fases. O vestido verde de alcinhas comprado durante uma viagem a São Paulo, em 2015; a calça branca que usei para a cerimônia de posse do concurso público, ano passado; a blusa preta Lino Villaventura que vesti na colação de grau da Rebeca Bento. Todas usadas até a exaustão em diferentes combinações.

Muitos reparam nesse exterior que comunica, mas não define. Vivemos em um mundo instantâneo. São 15 segundos para rolar vídeos e tirar conclusões sobre pessoas e lugares… Parece contraditório, mas, por amar tanto as roupas que carregam histórias, fico enfadada desse cenário efêmero. Quero vestir para me sentir confortável, abraçada, deslumbrante, enigmática. Quero que as pessoas sintam o quanto de emoção e apatia há nessa escolha diária. Mas também quero paz para pôr minha blusa com estampa de gatinhos no cinema - pois foi presente da fotógrafa e produtora cultural Iana Soares e, por Deus, eu uso e os problemas desaparecem.

Por mais que eu tenha apego e até uma certa devoção, sei que as roupas são somente um subterfúgio. Eu consigo disfarçar ou enaltecer emoções. Eu me escondo e me revelo. Brinco de ser outra pessoa. Finjo ser sedutora, diplomata, blasé, infantil. Com a camisa branca de linho, sou capaz de tomar as decisões mais absurdas. Com o macacão alaranjado, eu subo em qualquer palco. Mas, no fim, o vestuário funciona apenas como casca. E o mais importante não é o momento no qual eu vou colocar a roupa. Mas, sim, a hora de retirar e a pessoa que fará isso comigo.

 

Foto do Isabel Costa

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