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Serra Sharp
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Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é mediadora de leituras, jornalista e professora. Realiza ações no âmbito da leitura, desde 2016, em Fortaleza e na Região Metropolitana. É especialista em Literatura e Semiótica pela Uece. Autora dos livros Pitaya e das obras experimentais Vitamina D, Querida Anne e Retalhos. Aos domingos, quinzenalmente, é possível ler as crônicas da Bel no Vida&Arte, caderno do O POVO

Serra Sharp

O meu maior medo de criança não era quebrar o braço ou tirar um zero em matemática. Disso, eu tinha tédio. Medo — mas medo mesmo — eu tinha de derrubar no chão a tesoura de corte da mamãe. Você, leitor, pode argumentar que toda tesoura é de corte, entretanto, veja bem, para uma boa costureira, há classificações diferentes para cada objeto: a de cortar ponta de linha, a de abrir casas de botão, a de fazer acabamento, a de cortar etiquetas e papéis, e a (sagrada) tesoura de corte.

Mamãe sempre usou tesouras no estilo Serra Sharp, preferencialmente da marca mundial. Assim, grafada com 'u' mesmo. "Isabel, pega ali a tesoura de corte" era a pior frase que eu poderia escutar. Como ela ousava me confiar uma responsabilidade tão grande? Eu enchia os olhos de lágrimas imediatamente. Andava pé ante pé, agarrava a tesoura com as duas mãos e depositava no tabuleiro da máquina de costura.

Quando encerrava a missão, comemorava internamente por, mais uma vez, ter vencido o desafio sem maiores danos.

"Serra Sharp" quer dizer apenas "serra afiada". É um tipo de tesoura que, quanto mais é usada, mais amolada vai ficando. Por isso, é considerada "sagrada". Ela melhora ao invés de perder o fio de corte e é capaz de dilacerar a ponta da língua de alguém… Mas - quando é submetida a alguma pancada, trauma ou queda - a Serra Sharp deixa de funcionar a contento, pois a lâmina acaba perdida. Bingo! Aí residia o meu problema. Qualquer mínimo acidente inviabiliza o uso da lâmina microsserrilhada de forma irremediável.

Só quem já manuseou uma Serra Sharp vai entender. Ela é pesada, muito pesada. E a lâmina mais parece uma navalha, porém, ao invés de rasgar o tecido, ela desliza suavemente. Fecho os olhos e escuto o som impecável da tesoura, mas não há onomatopeia que possa se aproximar da definição. O cabo não é de plástico, claro que não. É feito de aço inoxidável - passando por um processo de niquelamento para aumentar ainda mais a vida útil.

Imagina só: mamãe passava anos com a mesma tesoura e ela sempre ficando melhor, mais afiada a cada dia, mais ágil quando escorria pelo tecido como um rio indo para o mar. Porém, por um simples descuido, todo o tempo investido é inutilizado. Em todas as vezes que derrubei uma Serra Sharp, eu olhei bem rápido para encontrar a reprimenda. Entretanto, nunca veio uma palavra de rancor ou briga. Primeiro, eu encontrava o silêncio.

Depois, ela piscava com os dois olhos, meio sem querer acreditar na cena, e soltava um "amanhã eu compro outra". A frustração ficava pairando no ar entre nós duas. Era um trauma de tempo e financeiro. Afinal, quem quer passar uma vida amolando uma tesoura e, por um acidente, voltar para a estaca zero?

O amanhã demorava a chegar. Pois ainda havia o dinheiro. Sempre o dinheiro. E essas tesouras nunca foram exatamente baratas. Atualmente, uma Serra Sharp de boa marca custa na faixa de R$ 200. Deve ser a tesoura mais cara do mundo.

A confiança não é um cristal. A confiança é uma Serra Sharp. Autoamolável. Quanto mais o tempo vai passando - e ele sempre passa! - mais a firmeza de uma relação vai sendo polida - como o corte de um tecido sem deslize. Mas basta uma queda ou pancada para a tesoura parar de funcionar. É uma única situação adversa para a confiança forjada ao longo de uma vida inteira ser desperdiçada.

Eu já tive tantas quedas que não saberia contar. Chamei pessoas de amigos e, da forma mais vil, a confiança é arremessada ao chão. Depois, passo um tempo sem tesoura até conseguir comprar uma nova Serra Sharp - celebrando a robustez e o cabo ergonômico. Só para viver tudo de novo.

Foto do Isabel Costa

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