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A filha esquecida
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Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é mediadora de leituras, jornalista e professora. Realiza ações no âmbito da leitura, desde 2016, em Fortaleza e na Região Metropolitana. É especialista em Literatura e Semiótica pela Uece. Autora dos livros Pitaya e das obras experimentais Vitamina D, Querida Anne e Retalhos. Aos domingos, quinzenalmente, é possível ler as crônicas da Bel no Vida&Arte, caderno do O POVO

A filha esquecida

Tipo Crônica
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Dorotéia foi esquecida. Ela é a filha que Georgentina, minha avó paterna, rejeitou desde o berço, talvez desde o útero. Os dois homens - Francisco Coêlho, meu pai, e José Coêlho, meu tio - foram amados pela mãe com todo o desvelo do mundo. Mas Dorotéia sequer teve a chance de ser criada na casa da família - em meio aos coqueiros, aos cajueiros, às mangueiras e às outras árvores frutíferas do terreno.

Antes dos 15 anos, Dorotéia - a Dorô Coêlho - foi feita como doação para um parente distante. O motivo nunca foi explicado. Meu pai não lembra dos fatos - apenas diz que a irmã mais velha e a mãe viviam em guerra constante. Quando a situação ficou insustentável, a mocinha foi convidada a se retirar do convívio familiar. Na morte do pai, Dorotéia não apareceu. Sabia bem que não seria bem quista. E, de tanta falta, de tanta ausência, de tanta repulsa, ela acabou sendo esquecida. Os filhos eram apenas Chico e Zé.

Soube da existência da Dorô Coêlho quando eu já era adulta. Um dia, em uma conversa banal, minha mãe citou: "É porque a tua tia Dorotéia..."

"-Quem?"

"-A Dorotéia, irmão do teu pai"

"-Pera, o papai tem uma irmã?"

Fiquei embasbacada. Rapaz, mas como é possível? Uma irmã não é necessariamente algo para ser escondido. Mas Dorotéia foi além disso: ela foi esquecida, anulada. Apagada das fotos de família, apagada das celebrações, apagada do convívio e, obviamente, apagada da herança.

Quando a vovó Georgentina morreu, meu pai e meu tio iniciaram uma briga que parecia infinita para disputar umas casas velhas e um terreno por cuidar. Dorotéia apareceu no fórum para reivindicar aquilo que julgava lhe pertencer. No entanto, para surpresa coletiva, anos antes da morte, a velha Georgentina articulou para que a filha esquecida não fosse beneficiada. Ou melhor, para que fosse excluída deliberadamente do testamento...

Fico pensando como isso foi possível… Uma mãe detestar tanto uma filha a ponto de apagar da vida e da partilha de bens. Também não sei como isso se deu diante da lei. O quê a velha Intina fez para conseguir excluir a Dorô?

A história da filha esquecida é cheia de perguntas sem respostas. Sozinha, eu tento traçar caminhos óbvios que me levem até uma resolução. Nada.

E, como a vida é cheia de acasos inevitáveis, minha irmã caçula acabou na mesma escola onde um dos muitos netos de Dorotéia estudava. Primeiro, ela achou curiosa demais a semelhança entre o colega e o nosso pai: o mesmo nariz, o mesmo olhar. A suspeita foi crescendo: "Irmã, tu não sabe, tem um garoto na minha sala tão parecido com o pai, será que ele teve um filho fora do casamento?"

Mas, além dos traços físicos, o rapaz ostentava um sobrenome distinto: Coêlho - grafado assim mesmo com o acento circunflexo na letra "e". Fizemos um quebra-cabeças e descobrimos o óbvio: Dorotéia teve muitos filhos e filhas que lhe deram muitos netos. O rapaz era filho da Antonieta - a Nieta Coêlho, filha mais velha da Dorô.

Sempre quis ir visitar a minha tia esquecida. Deixei o tempo passar e coloquei o encontro como "algo para resolver no futuro". Pensava sobre como abordar e como seria recebida…

Porém, durante a pandemia, enquanto meu pai e meu tio ensaiavam fazer as pazes da briga de 30 anos, Dorotéia morreu de forma abrupta. Não descobri as circunstâncias específicas, mas sei que ela já estava na casa dos 85 anos e ostentou uma vida boa, tranquila e feliz, ao lado de seus muitos filhos e muitos netos.

Foto do Isabel Costa

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