Professor de História na rede pública Estadual de Ensino do Ceará. Doutor em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa Patrimônio e Memória (GEPPM-UFC) e vice-líder e pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa História, Gênero e América Latina (GEHGAL-UVA)
Nas sociedades racializadas, onde a desigualdade é uma constante, a vida é, na verdade, uma loteria e quem não nasce branco nem faz parte das classes sociais de maior renda não poderá esperar pelos golpes da sorte
– É credito ou débito? – Perguntou o operador de caixa.
– É mérito! – Respondeu jocosamente um grande amigo meu.
Num país como o Brasil, em que a igualdade de oportunidades de acesso é tão restrita, o chiste de meu amigo até faz sentido. Afinal, ele brinca com o discurso de defesa e propagação da ideia de que a posição socioeconômica, o reconhecimento social e um “bom salário” dependem do percurso individual que, cedo ou tarde, dará resultados e virtudes exclusivamente por seus méritos. O sujeito da meritocracia passa, então, a ser deslocado e descolado dos grupos de origem virando a exceção que confirma a regra.
Na mitologia grega, há uma alegoria na figura de Kairós que simboliza o momento preciso, exato, em que as coisas têm que acontecer. A representação visual de Kairós é a de um jovem veloz, com asas nos pés, de uma longa cabeleira que somente cresce da metade do couro cabeludo para frente. Tal alegoria simboliza o instante da oportunidade, indicando a necessidade de nos agarrarmos ao cabelo do acelerado jovem no momento em que ele está passando ou então vai embora carregando consigo a chance tão esperada, já que é impossível ser puxado de volta por trás, pois sua nuca é calva.
Há ainda uma versão romana dessa alegoria. Nela, a divindade possui os mesmos atributos de Kairós, mas é uma mulher: Occasio. Como seu equivalente, ela se refere às chances e oportunidades da vida.
No mundo real as oportunidades e chances de uma vida digna não são tão justas e naturais assim. Nas sociedades racializadas, onde a desigualdade é uma constante, a vida é, na verdade, uma loteria e quem não nasce branco nem faz parte das classes sociais de maior renda não poderá esperar pelos golpes da sorte.
O Brasil, sabemos, é uma dessas sociedades. Aqui, costumamos apreciar muito o esforço e acreditamos na boa fama que o talento goza. Mas de que adianta esforço e talento se não houver ambiente propício ao seu desenvolvimento?
Estudo e trabalho, por exemplo, tão valorizados pela sociedade capitalista, são portas que se fecham reiteradamente no nosso país gerando armadilhas de pobreza e afetando principalmente os jovens. Além de suprimir a condição de bem-estar econômico e social, a retração da juventude nos espaços formais de educação e no mercado de trabalho afeta o desempenho econômico brasileiro. É uma situação que destrói recursos e riquezas do país e inviabiliza a participação dos jovens na produção de bens e serviços, fundamentais ao desenvolvimento equilibrado da economia nacional.
Acesso ao ensino superior
Como se não bastasse a situação crítica que divide o País há ainda um abismo que o separa: a principal porta de acesso ao ensino superior no Brasil, o Exame Nacional do Ensino Médio, é o mais branco e elitista da última década. Neste ano, a prova do Enem será aquela com menor proporção de inscritos pretos, pardos e indígenas e menos de 30% dos inscritos, com comprovada vulnerabilidade financeira, conseguiram isenção da taxa de pagamento da inscrição no exame.
Em tese, a lógica do Enem é universalizar o acesso ao ensino superior e estimular a inserção dos jovens no mercado de trabalho, independentemente das condições sociais, na prática, o exame em 2021 vai reproduzir e reforçar valores históricos de desigualdade racial e social no Brasil.
Desemprego
O público que deveria realizar a prova também enfrenta o crescimento substancial do desemprego. É o que mostra o estudo “Juventudes, educação e trabalho: Impactos da pandemia nos nem-nem”, elaborado pelo economista e diretor da FGV Social, Marcelo Neri, indicando cerca de 50 milhões de jovens brasileiros com idade de 15 a 29 anos na condição de desempregados.
No recorte da mesma faixa etária, o estudo publicado em maio deste ano aponta queda no número de pessoas inseridas no mercado de trabalho e em instituições de ensino: de 17,05% em 2012 passou para 11,02% em 2020.
Ao lado dos índices registrados, o estudo do FGV Social demonstra uma alarmante situação de vulnerabilidade que cerca os mais jovens brasileiros: não têm experiência devido à falta de oportunidades, e quando encontram emprego não conseguem ter experiência para assumir o posto de trabalho. Parece complexa, mas a conta é simples: melhorar a condição financeira de um país é fazer com que haja melhoria das condições de vida dos seus cidadãos.
Os efeitos perniciosos da meritocracia legitimam um sistema profundamente desigual, idealizam o sucesso individual, descontextualizam as relações históricas e sociais capazes de tornar evidente que pobreza não é exclusivamente falta de dinheiro. Falta de oportunidades causam marcas permanentes na trajetória de mobilidade e ascensão social de toda uma geração.
Deveríamos substituir esse estado contínuo de exclusão e de enaltecimento do triunfo individualista pela defesa intransigente dos valores da filosofia africana Ubuntu. Uma das traduções em português mais comuns do termo é “eu sou porque nós somos”. A ideia de que não dependemos de Kairós, muito menos de Occasio, e sim que dependemos uns dos outros, afinal a existência sem o outro é irrelevante.
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