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Sem balões no ar
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Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.

Sem balões no ar

Tipo Crônica

Unidade de Saúde Machuca. Sigo a ler as placas, caminho Aquiraz - Beberibe, passando por Cascavel. Côco caldo peixe, em três palavras soltas à velocidade do automóvel, leio não o escrito mas uma receita condensada: peixada. Mais à frente, plantão de vendas e deliro: as vendas todas reunidas. Vendo os olhos. José guia o carro e comenta no retorno para a Paripueira: "essas mandiocas já estão no ponto de quebrar". O verde ao vento-de-vai-já-chover se revela, então: promessa de tapioca, pirão, bolos, mingau de massa puba, bulim, sequilhos. O paladar a causar um desembesto na memória. Há anos passo por lá. Soube há pouco das mandiocas. Há sempre muito que nos escapa.

Um dia, entre Recife e o litoral de Alagoas, caiu a ficha do que a paisagem guardava: um mundo sustentado no trabalho escravo. Reconheci construções remanescentes de engenho vistas em livro da Fundação Joaquim Nabuco. Na volta, ofertas de beira de estrada, biscoitos feitos a mão, flores miúdas, desmancháveis todas as pétalas e volteios da massa até findar no recheio de goiabada. Açúcar. O livro, de mesmo nome, do Gilberto Freyre. A edição cheia de reprodução do papel picado-ornamento do chão da arquitetura efêmera dos doces, brevidades. Come-se jóia.

Na Igreja de N. Sra. dos Remédios, Benfica, não tem quatro anos, parei em uma missa de Semana Santa com leitura em jogral das escrituras. O padre lia em meio a outras vozes distintas, fiéis. O milagre da vida se realizando quando o vento nos incensou com o cheiro das cajás largando do pé no pátio lateral. Morte (?) da semente e ressureição (o fruto outra vez semente) dizendo da força da terra, para onde voltaremos. Talvez esse destino certo possa iluminar o viver, que não é preciso.

Estava na Praça da Gentilândia para um ato a favor da vida (é preciso explicar porque tem ato vazio cheio de ódio à vida), vi um prenúncio de procissão, segui e as chácaras dos passados do bairro se atualizaram no sagrado da cajazeira. Haverá sempre um possível? "Não siga a lógica, siga as placas", brinco de saber em que lugar isso se inscreve. Tinha uma placa ali pela Raul Barbosa: "Pátina?" seguido de um número de telefone. Tão direta, dava vontade de ligar. Mesmo achando pátina o fim da picada, que, você sabe, pode ser sinônimo de caminho. Você notou o desvio para a flexibilização, tipo lógica da retomada da economia? As placas gritam. Cada morte, são milhares, é única, inédita. Nilda Maciel perdeu o pai, Sebastião, e Flávio, o irmão, no mesmo dia. José, o que vem agora?

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