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Burle Marx e uma pergunta
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Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.

Burle Marx e uma pergunta

"É uma tal aleluia." Copio "Água viva", livro da Clarice, e volto ao antigo Santo Antônio da Bica, na Barra de Guaratiba, Rio de Janeiro. É o sítio cultivado, vivido e doado ao futuro por Roberto Burle Marx (1909-1994). Desde 1985 sob a guarda do Iphan. "Todas as plantas fazem parte de uma organização que os religiosos chamam de Deus", leio Burle Marx.

O sítio é uma oração que a gente passeia por dentro. Feito o juazeiro verde, visto no branco cinza da caatinga, o sítio segue florescendo na gente. Fica guardado, como reserva d'água no tronco da barriguda, na paisagem irrepetível de Quixadá. Um reservatório-ofertório para os tempos de seca, que não são só os de pouca ou nada de chuva.

Seguimos devagar pelo sítio. Anda-se devagar não só pelas subidas e outras exigências do relevo. É a fenda aberta no tempo pela situação de escuta deflagrada. Anda-se devagar no campo do sagrado.

Cito de memória a guia no começo do percurso: "Essa palmeira só floresce uma vez, por volta dos 40 anos de vida". Pausa. Olhamos para a belezura do ser vivo, de ser vivo. Garbo. De boca aberta, uma quebradinha no pescoço indica a direção do nosso interesse na vida manifesta em forma de palmeira. Ouvimos a guia: "Uma única e grande floração". Outra pausa. "Floresce e morre." Viramos um coro de "oh!". Susto? Lamento? Isso da morte sempre parecer inédita, absurda se anunciada. "Uma única floração. E morre", diz a guia, "deixando o solo cheio de sementes."

Conto a pessoas queridas, espantada com os milênios que tornaram possível a palmeira. Edito o tempo indo das centenas às milhares de sementes, vida-morte-vida. A natureza é trágica, leio no livro "Profetas da Chuva" o eco da voz do Seu Antônio Anastácio no encontro anual deles no Sertão Central do Ceará. Bonito que dói. Sem drama. O trágico e zero concessão. Folheando um livro sobre o paisagista, o olho tátil que se prolonga no dedo sublinha a legenda da foto de uma palmeira-do-ceilão: "Burle Marx dizia: o tempo se encarrega de completar uma ideia."

O sítio tem cerca de 3,5 mil espécies. Foi comprado em 1949 para abrigar a coleção de plantas iniciada na infância. Burle Marx conta de lembrar da "mãe podando roseiras em manhãs de sol do inverno paulista" e do interesse do menino pelos "esqueletos de plantas, que dias depois se cobriam de brotos e desabrochavam em flores". A família foi de São Paulo para o Rio em 1913. Livros contam o começo da coleção de plantas na casa-chácara no Leme, com Anna Piacsek, a babá da família.

Escrevo com jardins de calçada passando na memória. Vi tantos deles na antiga Floresta, ali no Jardim Iracema. Terreiros viçosos no caminho Fortaleza-Parajuru, gente na janela olhando a chuva. O jardim das flores peba nas estradas dos Inhamuns. E me pergunto como é possível perder o respeito à vida.

 

Foto do Izabel Gurgel

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