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Para ver a rua
Foto de Izabel Gurgel
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Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.

Para ver a rua

"É tipo 3D", diz o menino de 9 anos sobre as pinturas ornamentais da sala de espetáculo do Zé de Alencar. Em família, faz uma visita guiada às 4 da tarde. A luz já não cega. Dá pra olhar o jardim como pintura efêmera que é: vegetação compondo com céu, nuvens, luz deslizando nas superfícies e nos fazendo ver tons, geometrias, texturas. Na sala, a luz deixa o olho descansar ou não se cansar de ver. Visitação sem qualquer luz artificial. É uma das especificidades do TJA: um teatro à italiana cheio de sol.

Fechados, com plateia em formato de ferradura e separada do palco, de visão frontal, são teatros onde não se vê o "mundo-lá-fora". Vazada feito renda, a sala do Zé de Alencar tem outro sotaque. Mesmo à noite, é quase impossível o black out. A variação da luz cênica ou a passagem de veículos no entorno deixam a rua vazar para o teatro. São jatos que projetam, em cinema instantâneo, fragmentos das pinturas da sala.

As sombras do desenho em ferro são, à parte, um teatro de sombras. "Era criança quando fui pela primeira vez ao TJA", lembra Elane Fonseca. "Pequena, sentei e meus pés não tocaram o chão. Tinha que me esticar para ver melhor. Não me importei. Era tudo tão bonito. Tinha mais coisa para olhar do que tentar ver o espetáculo". Durante o dia, a luz do sol inunda espaços da cena e do público. 

Na história recente, a fachada metálica já foi coberta com uma cortina externa de tecido preto. Ficou o TJA feito uma obra do artista Christo. Ou uma gigante caixa de fotografia lambe-lambe. Ficou mais vezes sem a transparência característica, mas mudou o artifício: foi revestida internamente a parede de vidro.

A transparência prolonga o TJA. Estando no palco, dá para ver a rua, algo raro em teatros similares. Ver o ir-e-vir cotidiano. Talvez se possa dizer, a partir da ligação palco - rua, que o TJA abre uma fenda no desenho das outrora chamadas casas de ópera.

Além de tensionar o modo de compreender o espaço de teatros à italiana, talvez também se possa dizer que o Zé de Alencar abre uma brecha em nossa experiência de tempo. A regulação dada pela eletricidade, com luz artificial e uso tão prático, pode ali conviver com a complexidade da regulação pela luz do sol. Pra nos fazer lembrar da carga de tempo, matéria-prima da vida, que o mundo como a gente conhece levou para ser inventado. Se inventado foi, pode ser desfeito. E refeito. O TJA de 1910 tem o mesmo nome, mas não cessa de mudar.

Pensei agora nele cheio das nossas ausências. Nosso exílio sendo o campo das perguntas que não param de nos atravessar. Digo aqui a que sempre uso para falar com pessoas queridas: como está você?

Foto do Izabel Gurgel

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