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Antes da vacina
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Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.

Antes da vacina

No ofertório, o cheiro de cajá. Vinha do pé no terreiro da Igreja N Sra dos Remédios, Benfica. Domingo de ramos, segui o cortejo da Praça da Gentilândia até lá, migrando de uma roda de teatro de rua, do grupo Bagaceira. Foi outro dia, mas no tempo pandêmico, poderia ser 1908, quando chegou a estrutura de ferro para a sala de espetáculo do Zé de Alencar. E as pessoas saiam de casa para ver a obra. Celeste Cordeiro conversou com quem foi criança na Fortaleza do começo do século 20 e contou pra gente no livro "Brinquedos da Memória".

Os pés de oiti do Zé de Alencar estão lá desde antes da construção do teatro. Burle Marx integrou as árvores ao primeiro jardim do TJA, inaugurado em 1973. Jiboias crescem no tronco deles que, calcula-se, vivem desde o século 19. Seriam da patota do oitizeiro do Rosário cuja derrubada mexeu com Fortaleza, como Raimundo Girão conta em "Geografia Estética de Fortaleza"? Pertinho dos pés de oiti, quase vizinho de quintal, tem um pé de sapoti na Casa Juvenal Galeno. A casa é um elogio ao silêncio. Indo rumo ao pátio interno, duvida-se da rua lá fora ser a General Sampaio.

As árvores, como os livros, conversam entre si. Migram. Já estou na ribeira dos Icós, desci no rumo Cariri (olha os 'pés de juazeiro' nominando uma cidade toda. E que cidade!), do GeoPark Araripe como uma faixa silenciosa, tocada pelo vento, a dizer dos milhões de anos que a Terra levou pra ser a Terra que se conhece. E nela mora. E dela vive. Lembrei agora d'O Barão nas Árvores, personagem do Calvino que faz o percurso de uma vida pelos galhos e copas das árvores.

Chegamos, Icó. O susto não cessa: as duas velhas tamarineiras da Rua das Almas agora só se encontram na memória. Se Icó fosse uma orquestra, elas seriam solistas. Vou contar rapidez. Nos altos da casa que foi de Dona Glória Dias, Dona Fransquinha Olímpio me contou sobre os pés de tamarindo que ficavam em frente ao sobrado onde morava. À sombra deles, século 19, cavalos repousavam do leva e traz gentes e cargas. O cheiro deles, urina e fezes, incomodava o vizinho, Barão do Crato, que ameaçou cortá-los. Dona Glória respondeu estocando pólvora: corte e faço explodir seu sobrado. As duas casas seguem de pé. A pólvora foi doada à igreja. Conta-se assim o surgir das bombas do Senhor do Bonfim, fogo sagrado que acende um calendário próprio na cidade de núcleo histórico tombada pelo Iphan. Monumental, a instalação artesanal marca o fim da procissão do santo, todo primeiro de janeiro. É o maior acontecimento do lugar.

Pois um dos pés de tamarindo caiu. Pode-se dizer: chuva grande derrubou. Relendo Otacílio de Azevedo, "Fortaleza Descalça", volto ao cajueiro botador na Praça do Ferreira, velho como as tamarineiras. O cajueiro da mentira, da festa pública todo dia primeiro de abril. As árvores cuidam da gente. A gente presta a devida atenção a elas?

 

Foto do Izabel Gurgel

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