Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.
Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.
Digo que Aldízia Pereira dos Santos, a menina Babai, é a rendeira mais antiga em atividade hoje em Canoa Quebrada. Vai fazer 86 dia 8 de setembro. Nasceu em 1935.
Babai risca no tecido o desenho-guia da renda a ser feita; corta, para começar a desfiar; desfaz parte do tecido, abrindo os vazios a serem outra vez e de um modo outro preenchidos; estica o tecido na armadura de madeira, a grade; e com agulha e linha, faz ponto por ponto da renda bordada ou do bordado rendado de nome labirinto. É uma labirinteira.
Faz quase todo o serviço. Uma vez retirado da grade, o tecido é lavado e engomado, ou seja, "banhado" em goma e passado a ferro quente. Entram no feitio outras mãos, como as de Ivaniza da Rocha Freire. "Não sou labirinteira não. Só pego no labirinto depois que termina o serviço na grade".
Osmira da Rocha Freire é de agosto de 1934. Não por escolha, deixou de fazer labirinto: "A vista não alcança mais". Além do sol, elas levam no corpo noites de trabalho à luz de lamparina. O efeito nos olhos do fogo aceso no algodão torcido e embebido de querosene, fuligem assentada na ponta do nariz, manchou também o sonho de Maria Carmélia da Rocha Santos, 80, o de "ficar velhinha fazendo labirinto".
O ofício, Dona Osmira aprendeu criança com a mãe, Conceição Vicente da Silva. E vive na filha Liduina. Uma foto da bisneta Lijanira rodou mundos: ela miúda fazendo renda junto à grade de madeira.
Liduina aplicou na opa usada nas celebrações católicas a palavra "salmista" em labirinto. Naquele Domingo de Ramos, antes da pandemia, a toalha do altar era obra das irmãs Estelita, a Mocinha, e Fernanda. Todos na casa de Maria Júlia e Benedito Rocha Freire, o Tim, aprenderam a fazer renda com a mãe. Eunice e João de Tim seguem (n)o fio.
Imagino a igreja a surgir feito labirinto, fazendo-se por várias e anônimas mãos. Era comum no feitio da renda o ir e vir das grades de uma casa a outra, de um terreiro ao outro, no rumo de quem fizesse melhor aquela parte do serviço.
No alto das portas e janelas da igreja, que tem perdido o espaço vazio ao redor, imagino peças de labirinto filtrando os ventos. Materializam no corpo de quem reza a passagem do ar. Quase uma carícia o que já passou como devastação.
Tangida pelo vento, Babai refez três, quatro vezes a casa em que mora. Até fazê-la no alto do morro, no mais exposto da duna. É a casa na hoje chamada rua principal, a Dragão do Mar, conhecida por Broadway.
Nos anos de 1970, Canoa tinha pouco mais de mil habitantes. Homens ao mar, pescando; mulheres na areia, fazendo renda. Havia época de seca no mar. O labirinto, ofício das mulheres também feito pelos homens por elas iniciados, dava o ano todo. O trabalho das mulheres a manter cotidianos. Você também reparou que quase nunca usamos vila de rendeira para denominar uma vila de pescador?
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