Logo O POVO+
Rendeiras de Canoa: filhas da mãe
Foto de Izabel Gurgel
clique para exibir bio do colunista

Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.

Rendeiras de Canoa: filhas da mãe

Digo que Aldízia Pereira dos Santos, a menina Babai, é a rendeira mais antiga em atividade hoje em Canoa Quebrada. Vai fazer 86 dia 8 de setembro. Nasceu em 1935.

Babai risca no tecido o desenho-guia da renda a ser feita; corta, para começar a desfiar; desfaz parte do tecido, abrindo os vazios a serem outra vez e de um modo outro preenchidos; estica o tecido na armadura de madeira, a grade; e com agulha e linha, faz ponto por ponto da renda bordada ou do bordado rendado de nome labirinto. É uma labirinteira.

Faz quase todo o serviço. Uma vez retirado da grade, o tecido é lavado e engomado, ou seja, "banhado" em goma e passado a ferro quente. Entram no feitio outras mãos, como as de Ivaniza da Rocha Freire. "Não sou labirinteira não. Só pego no labirinto depois que termina o serviço na grade".

Osmira da Rocha Freire é de agosto de 1934. Não por escolha, deixou de fazer labirinto: "A vista não alcança mais". Além do sol, elas levam no corpo noites de trabalho à luz de lamparina. O efeito nos olhos do fogo aceso no algodão torcido e embebido de querosene, fuligem assentada na ponta do nariz, manchou também o sonho de Maria Carmélia da Rocha Santos, 80, o de "ficar velhinha fazendo labirinto".

O ofício, Dona Osmira aprendeu criança com a mãe, Conceição Vicente da Silva. E vive na filha Liduina. Uma foto da bisneta Lijanira rodou mundos: ela miúda fazendo renda junto à grade de madeira.

Liduina aplicou na opa usada nas celebrações católicas a palavra "salmista" em labirinto. Naquele Domingo de Ramos, antes da pandemia, a toalha do altar era obra das irmãs Estelita, a Mocinha, e Fernanda. Todos na casa de Maria Júlia e Benedito Rocha Freire, o Tim, aprenderam a fazer renda com a mãe. Eunice e João de Tim seguem (n)o fio.

Imagino a igreja a surgir feito labirinto, fazendo-se por várias e anônimas mãos. Era comum no feitio da renda o ir e vir das grades de uma casa a outra, de um terreiro ao outro, no rumo de quem fizesse melhor aquela parte do serviço.

No alto das portas e janelas da igreja, que tem perdido o espaço vazio ao redor, imagino peças de labirinto filtrando os ventos. Materializam no corpo de quem reza a passagem do ar. Quase uma carícia o que já passou como devastação.

Tangida pelo vento, Babai refez três, quatro vezes a casa em que mora. Até fazê-la no alto do morro, no mais exposto da duna. É a casa na hoje chamada rua principal, a Dragão do Mar, conhecida por Broadway.

Nos anos de 1970, Canoa tinha pouco mais de mil habitantes. Homens ao mar, pescando; mulheres na areia, fazendo renda. Havia época de seca no mar. O labirinto, ofício das mulheres também feito pelos homens por elas iniciados, dava o ano todo. O trabalho das mulheres a manter cotidianos. Você também reparou que quase nunca usamos vila de rendeira para denominar uma vila de pescador?

 

Foto do Izabel Gurgel

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?