Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.
Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.
Você sabia que Fortaleza guarda uma senhora coleção de renda, talvez das maiores em acervos públicos no Brasil? Está no Museu Arthur Ramos, integrado à Casa de José de Alencar, ambos mantidos pela UFC. Sem receber visita por conta da pandemia em curso, parte do acervo é portátil, migrante. Está no livro "Renda de Bilros - A coleção do Museu Arthur Ramos", catalogação feita por Valdelice Carneiro Girão. A publicação teve duas edições. A primeira em 1984, pela UFC, e uma mais recente do Instituto do Ceará, instituições das quais a professora pesquisadora fazia parte.
No livro, os fragmentos de rendas chegam até nós reunidos em álbuns de papel, feitos a mão, como a maioria das rendas. É o modo como parte da coleção se encontra no museu. Folhear o livro e, através dele os álbuns, atualiza Italo Calvino dizendo ter sido a literatura, e não o cinema, a inventora do zoom. O movimento de migrar da visão panorâmica para o olhar de perto, pertinho. São jóias da ourivesaria do fiar e do tecer, do desenho de micro evoluções da linha a ser movida por bilros ou agulha, um concerto de mãos ágeis e cheias de saber como são as mãos de quem, por exemplo, dedica a vida a tocar piano.
Cito o fragmento de datação mais antiga, de acordo com o registro no livro. Uma renda de 1865, feita em Aracati. A coleção iniciada pela também professora Luiza Ramos tem exemplares do Brasil e do exterior. A professora Valdelice ampliou o acervo, viajando pelo Ceará para coleta de materiais. O livro nos oferece, então, uma experiência tátil de cinema sobre o trabalho de legiões de mulheres, a maioria delas anônimas, com jornadas consideradas menores. A própria Luiza Ramos tem uma trajetória de estudo e pesquisa à espera de ser afirmada em nome próprio e não só como colaboradora do marido, o antropólogo Arthur Ramos.
Imagino, então, o livro se desdobrando no espaço, forjando uma área expositiva. Um labirinto de rendas. Cada qual a seu modo, visitantes fazem percursos acionando a memória com rostos, imagens de mulheres rendeiras vistas em caminhos trilhados os mais diversos. Praias, sertões dos vales e das serras. Cearás que não conhecemos materializando-se na vida de Maria Luiza Inácio da Rocha, de Maria Alzira de Castro Sanders, e na canção dos bilros levantando renda em suas almofadas em Aquiraz. Lucilene Santos Silva, Luzia Rodrigues e Ana Kelly Santos do Nascimento trocando bilros no desfrute do vento no alpendre da casa no alto, à entrada e saída do Assentamento Maceió, em Itapipoca. Maria Ferreira, a Mariazinha que veio do outro lado do rio, da Vieira dos Carlos, e vive com os Tremembé da Barra do Mundaú.
Fiar e tecer, nomear mundos. Um desejo de vida em meio à matança. Se você não foi à rua dia 29 de maio, o movimento fora genocida chega até você por aqui, surgindo do vazio como um desenho de renda.
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