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Sobre viver
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Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.

Sobre viver

Tipo Crônica

"Se for botar nome de peixe pode mandar buscar papel!", diz o pescador Alcides da Rocha Freire à escritora Wanda Figueiredo, então visitando Canoa Quebrada vez no final dos anos de 1970. Ela publica "Aqui Canoa Quebrada" em 1979. Da lista do Alcides, selecionei uns 40 pra você ter ideia do que havia nas águas de lá: agulha, agulhão-de-vela, arenque, ariacó, atum, avoador, baiacu, bagre-beiçudo, bagre-mandim, bonito, boi-de-carro ("é um peixim listrado preto e amarelo, é todinho um boi"), biquara, bicuda.

Um ABC da fartura com cavala, cangulo ("a carne dele não é boa, o gosto tá todo na cabeça"), canguito, cará, cação flamengo (Alcides cita ao ver gente passando com o peixe: "Respeite isso aí fritado!"), cioba, coró, espada, frade ("tem a cabeça como um frade, tem a coroazinha do frade"), galo branco, guaiúba. Tem jacunda, jururuca, macasso, mariquita. São duas páginas no livro: oiúdo, olho-de-vidro, pacamão, parum, pargo, pirá, pirambu, piraúna, sambaia, sapuruna, sardinha, sargo. E três qualidades de traíra, tibiro, umatá ("é do rio, não é do mar", diz ao ouvir o nome citado por sua esposa Raimunda, que Wanda encontrou "assentada na areia fazendo labirinto", o nome da renda de agulha do lugar). Xaréu.

O mundo carece de nomeação. Amplitude ao olhar o tão perto, tão longe. Desde a primeira vez que li o livro dedicado ao sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho então "em longo exílio pelo mundo", a nomeação dos peixes por Alcides me leva a Burle Marx, o paisagista, dizendo da vontade dele e necessidade nossa de ampliar o vocabulário de jardim no Brasil. Isso que a gente sabe de cada mundo ser imenso e tão restrito.

Burle Marx foi trazendo de vários lugares, muitos deles nos brasis que não conhecemos, plantas não consideradas ornamentais. Contava brincando que chegou a dizer para quem lhe havia encomendado um jardim que era 'da Birmânia' uma planta nativa usada no projeto. Até ampliar a compreensão, provocando deslocamentos mínimos e tão grandes no entendimento do mundo. Uma senhora em visita guiada ao jardim do Theatro José de Alencar, projeto dele, comentou algo como "Nunca pensei que jucá servisse pra enfeitar" ao ouvir a guia, Vilani Moreira Barbosa, falar da árvore vizinha ao jasmim-manga.

Fui visitar Mundinha, Raimunda Alves de Souza, nascida e criada no Mucuripe. Pintora do bairro, tem 88 anos. A artista me levou até Canoa. Não só pelo ofício de rendeira do labirinto. Outrora vilarejos os dois. Bom pra gente focar a ampliar o olhar. Sabe a rua por trás da igreja de N Sra da Saúde, onde acontece a feira livre às quintas? Casas e habitantes foram retirados para dar lugar ao edifício em construção, impossível de ser casa das gentes moradoras nas áreas há mais de 50, 60 anos. Não é novidade, eu sei. Cito aqui pelo espanto. Há muitos modos de matar os peixes, não é?

Por falar em espanto e matança, ontem foi dia de rua #foragenocida. Você também foi balançar essa rede?

 

Foto do Izabel Gurgel

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