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O porco de batom
Foto de Izabel Gurgel
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Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.

O porco de batom

Tipo Crônica
Ilustração Carlus Campos (Foto: Carlus Campos/O POVO)
Foto: Carlus Campos/O POVO Ilustração Carlus Campos

Tem vários tempos o tempo. O nosso [humano] não é único. Assim ouvi falar o mateiro José Alves Carneiro ao sol e à sombra de Pacoti, no Maciço de Baturité onde nasceu em 1963. É, desde então, seu lugar de morada. Abre a mão, espalmando-a, e conta os vários ecossistemas que reconhece na região que vive como uma casa-corpo. Sabe, sentindo, que a Terra é nossa casa comum.

Um susto, uma surpresa da ordem da estupidez, lhe parece a constatação de, em um curto espaço de tempo que localiza nos anos 1980, ter visto a extinção de cinco tipos de peixe de casca, como se refere ao camarão. Pelo menos cinco tipos. Diz e se dá conta que coincide com o uso mais incisivo de agrotóxicos na área. Ele tem desde os 6, 7 anos um pacto firmado consigo, e com os encantados, de ser zelador da natureza.

Leio o naturalista Richard Fortey na edição brasileira de "Vida: uma biografia não-autorizada". A capa anuncia A história dos últimos 4 bilhões de vida na Terra. A primeira edição, inglesa, é de 1997. Escute Fortey: "A narrativa da vida exige uma escala abrangendo milhares ou milhões de anos, percorrendo um drama com mais de três bilhões de anos. Os geólogos não se impressionam com esses números. Os criacionistas simplesmente não acreditam neles. Na verdade é difícil vislumbrar essa imensidade de tempo porque ela está tão fora da proporção das nossas vidas breves. A tentação é de recorrer a metáforas familiares. (...) A domesticação do tempo serve para trivializar sua magnitude, que deveria ser considerada com admiração. (...) Assim pelo menos poderíamos apreciar a imensidão do tempo, seus instantes incontáveis (...).

Ouvi uma cientista social, transformada pelos seus encontros com povos indígenas, contar como eles sabem o que dizem quando dizem "água se planta". A orquestra em sofisticado andamento, como se vê no documentário O Sal da Terra, vida e obra do fotógrafo Sebastião Salgado. Em uma volta a Minas Gerais da sua infância, ele encontra seca, devastada, a terra verde, molhada, cheia de vida, que guardava na memória. Ele e a produtora Lélia Deluiz Wanick, com quem é casado, iniciam o reflorestamento do lugar. Árvore por árvore na aridez de três desertos. As fontes d'água, matadas, invisibilizadas e inviabilizadas, voltam a brotar. Água se planta. O saber de povos originários realizado, tornando visível o milagre da vida. A Terra, como nosso corpo, é água em sua maior parte. Assim aprendemos na escola.

Agora, o porco de batom. Sobre o horror da matilha robozóica na ONU, li que era ação do tipo passar batom no porco. Refiro-me às mentiras calculadas, urdidas em nome da matança como política pública. Em "Como se faz uma tese", Umberto Eco diz que uma tese é como um porco: aproveita-se tudo. Em outro livro, "Em busca do prato perfeito", Anthony Bourdain nos faz rodar mundos até achar em Portugal o que o título anuncia. E realiza a tirada do pensador italiano. Ler é escutar, sabemos. Então escrevo por ouvir dizer. Mas é preciso pedir desculpas aos lobos e aos porcos. Os livros citados são afirmações da vida. E como a gente, lobos e porcos só querem saber de viver.

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