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Valei-nos, N Sra. das Candeias
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Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.

Valei-nos, N Sra. das Candeias

A casa do Mestre Nena, no bairro João Cabral, Juazeiro do Norte, é um museu. Museu do mestre do grupo Bacamarteiros da Paz. Bacamarte contado como aparecido depois da Guerra do Paraguai, que o Paraguai conta como a Guerra Grande, a que destruiu o país. Matança urdida pelo Estado brasileiro, como foram as de Canudos e do Caldeirão do Beato Zé Lourenço. Tão perto, tão longe. O dístico à entrada do museu dá outra função ao bacamarte: matar não, brincar sim.

A Guerra Grande está no livro de Augusto Roa Bastos. E no espetáculo do Hara Teatro Danza, grupo de Assunção que mostrou em Fortaleza a guerra contada pelas mulheres. O nome do espetáculo é Cenizas, cinzas em espanhol. Os rastros da destruição estão impressos no mundo, dure o mundo o tempo que durar. Nossa dor balança o chão da praça, diz o poeta em uma canção de carnaval.

A guerra que teve uma de suas batalhas nomeando rua de Barbalha que forma, com Juazeiro e Crato, a trinca do Cariri cearense. A região tem mais de vinte municípios. Na Rua do Vidéo passa o cortejo de carregamento do Pau da Bandeira, o abre-lindo da festa de Santo Antônio para onde correm em busca da seiva da vida, em um domingo de junho, todos os dias da cidade.

Bacamarteiros e bacamarteiras desfilam saudando lado e outro da rua, dando pinote, mirando pontaria, disparando em nome da vida e da alegria. O pau, você sabe, foi escolhido bem antes muito, cortado e deixado na mata para ficar no ponto de ser levado pelos homens que vão buscá-lo na madrugada do dia em que ele vai virar mastro e anunciador de vento, sustentando no alto a bandeira do Santo, erguida já no escuro da noite nova. Um dia inteiriço para começar a Festa de Santo Antônio de Barbalha.

Brincantes da tradição popular entram na igreja-matriz, dedicada ao padroeiro. Depois de fazerem a rua se torna o seu melhor: o mundo feito espaço para andar brincando, o corpo todo um arsenal de olhos, nariz, boca, ouvido, lastro de tato, sentindo, sentindo, sabendo estar vivo e achando bom. Os pássaros guardados nos pífaros das bandas cabaçais estão soltos desde a alvorada. Saudar o dia é ofício de cada vivente.

O cortejo de rua reúne, pois, bacamartes em ação e silêncio e ação e pássaros em vôo e pausa e vôo. É um modo singularmente bonito de dizer como viver junto. É junho. Festa da colheita. Um dia grande, um imenso ato, como lançar sementes na terra.

Cruzam a rua brincantes de reisados, maneiro pau, pastoril... Entram na igreja para a missa matinal. À hora do ofertório, ao cordeiro divino entregam cachos de banana, balaios de macaxeira, maracás e cafuringas de Mateu, o riso outro da Catirina, o pelo-sinal-da-santa-cruz dos Penitentes.

Festa é fenda no tempo. Imagino Mestre Nena à saída da procissão da Mãe de Deus das Candeias no Socorro (estamos de volta ao Juazeiro, fevereiro). Cada salva é o mestre a honrar, festejando, a vida que inventou para si no possível que lhe foi dado. Talvez recorde, então, ele moço escapando por milagre, em uma enchente do Salgadinho, quando tentava pegar uns peixes para fazer mercado na rua. Promessa feita, promessa paga. O grupo, a bem dizer, um ex-voto do mestre. Pandemia em curso, Candeias finda sem procissão. Viva o 2 de fevereiro!

 

Foto do Izabel Gurgel

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