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Ouvir dizer. Ler é escutar
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Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.

Ouvir dizer. Ler é escutar

"Não derramei uma lágrima." Ouvia, então, uma senhora que faria 80 anos naqueles dias. Ela me contava da morte do marido. "Já havia chorado tudo por ele, antes dos meus 30 anos".

"Pedro Lírio dos Anjos nasceu de sete meses". Encontro a anotação em uma caderneta. Talvez eu tenha anotado pela beleza do nome, um poema pronto, como digo sobre o nome Plácido Cidade Nuvens.

Plácido Cidade Nuvens criou o Museu de Paleontologia de Santana do Cariri, o museu que anos depois levaria seu nome. O museu nos lembra como as pedras podem falar. As pedras cantam.

Entramos na mata para ver a floração de batiputá no território Tremembé da beira do rio Mundaú, em Itapipoca. Um morador, recém-iniciado na pesquisa do fruto, ia à frente. "Meu avô diz pra conversar com as árvores quando temos algum problema, algo pra resolver. Ele diz que elas vivem há muito tempo, sabem muito mais do que a gente".

"Quem vê coisa de outro mundo, as carnes não se unem mais". Ouvi de um senhor de muito chão nos pés e céu nos olhos. Tangeu gado, morou fora do Ceará. Em São Paulo, trabalhou em construção, 35º andar. "Lá de cima, as pessoas no chão parecem cabeça de prego, umas moscas". Cruzou rio em cheia para salvar vida, socorrendo vizinhos doentes. Disse-nos que conhece a Serra do Nascente 'grota por grota'. De travessias feitas à noite e durante o dia, no tudo bem e no aperreio, sob sol, sob chuva. Eu o conheci depois de cego. Ele no alpendre de casa, movendo-se em direção à serra quando contava do ir e vir, desenhando no ar, pra gente ver o território tão bem apreciado e por ele incorporado. "Posso ir lá a qualquer hora". Range a porta, longe bate chocalho de gado, à frente da casa passa uma moto, anotei.

Ouvi de um professor de espanhol coisas tão bonitas da vida dele. Anotei sobre uma professora do primário, então com mais de 100 anos. "Até caducar era bonito. Ela dizia que a casa em que vivia era um presente que havia recebido. E era. Mas havia acontecido há mais de 40 anos. Ela trazia o presente do passado para o presente". O que é, é agora.

Da professora que criou e mantém aceso o Iluminuras - Literatura e Bordado, projeto de extensão junto à Universidade Federal do Ceará (UFC), escutei sobre a recomendação que lhe era feita quando criança, no interior do Ceará, a caminho dos banhos. Para dar uma batidinha na água, acordando a água. A pessoa avisando que estava ali, assim um "ô de casa", nas adjacências de pedir licença, anunciar-se. Era banho de açude, Profa. Neuma?

Dona Nilce abria cocada quente na pia de cimento, molhada. Cortava com peixeira. Era da Serra do Cotovelo, Jardim, entre Ceará e Pernambuco. Morava em Barbalha, onde mora Indra, a neta que me contou da cocada quente na água fresca.

Dedico o arrazoada de hoje a quem, como eu, tem gosto em ouvir dizer.

 

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