Logo O POVO+
Um bosque aberto para a cidade
Foto de Izabel Gurgel
clique para exibir bio do colunista

Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.

Um bosque aberto para a cidade

Tipo Crônica
Ilustração de Carlus Campos para crônica de Izabel Gurgel (Foto: CARLUS CAMPOS/O POVO)
Foto: CARLUS CAMPOS/O POVO Ilustração de Carlus Campos para crônica de Izabel Gurgel

"Pra completar, parou uma garça branca". Escuto Seu Milton, Francisco Milton de Souza Lima, no bosque do Paço Municipal, o casarão por trás da Catedral, no Centro de Fortaleza. Estamos em 2006, no segundo semestre do ano, como agora.

Anotei no caderno, logo depois da garça, anum branco, anum preto, bem-te-vi, sabiá, periquito australiano. Seu Milton dizendo da fauna do lugar. Acompanho, além da fala, a luz variando, filtrada pelo verde. Entra no rol dos lugares de sensação térmica agradável mesmo com o sol tinindo.

O que me faz lembrar de calçadas nos altos da cidade com vista para o mar, como a da Santa Casa de Misericórdia. Bonito caminho do vento no Centro. A Cidade é uma experiência que a gente sente no corpo.

Sobre o bosque, Seu Milton se referia às árvores como de fato o que eram, criaturas do seu convívio. Pé de acerola, caju, castanhola, fruta-pão, jambo, laranja, manga. Contei pra ele que, entre a infância e adolescência, uma tia morando na vizinhança, íamos as primas para pegar fruta. Chegávamos com saco de mercantil, então de papel. Com sapotis por cima, eram levados com cuidado de mãe de primeira vez dando banho em recém-nascido.

Pedi e ele fez a lista de plantas, desde as de forração às de copa mais alta, semelhando nave de igreja. Guardo a folha, papel timbrado da Prefeitura de Fortaleza, datilografada em duas colunas. São 48 nomes seguidos de "e muitas outras plantas". Anotado à mão, ao final, mini-lacre vermelho, mini-lacre amarelo, mini-lacre azul. Em maiúsculas, área quadrada. Na linha seguinte, 17.313 metros quadrados. Caneta preta.

A lista começa com "1 Pé de Carambola" e vai até "1 Pé de Mulungu", sublinhado para dizer da divisão feita na organização da lista. Segue, então, "Plantas de Flores", aberta por "Abacaxi de Salão". Conhece?

E "Panamá", Pingo de Ouro, "Eu e tu"?

Vivi o bosque também como passagem. De entrar pela então sede da Funcet, no comecinho da Pereira Filgueiras, descer pelo anfiteatro e sair pelo Paço. Ou fazer o caminho contrário.

Pé de graviola, pitomba, maniçoba, jatobá, munguba. Feijó, juá, juazeiro. "22 Pé de Palmeira", quatro de goiaba, dois de ciriguela. Um dos baobás da cidade está lá no quintal da antiga residência do Bispo, onde passa o Pajeú, antes de margear o estacionamento do Mercado Central e chegar no mar.

"Limpar o Pajeú. E deixar de pensar que é esgoto." Diz Seu Milton. É a última linha anotada no caderno.

Abrir o bosque para a gente aprender quase seria a última linha hoje. Mas "Torém - brincadeira dos índios velhos", do antropólogo Gerson Augusto de Oliveira Jr., não sai dos canteiros da minha memória. Professor da Uece, Gerson mostrou o livro no Paço, em noite com Tremembés de Almofala dançando o dito Torém, que é árvore. Daquelas que cresce procurando sol e tem, dentre os ofícios, o de favorecer o reflorestamento. O livro (editora Annablume, 1998) é uma joia do Ceará.

 

Foto do Izabel Gurgel

A soma da Literatura, das histórias cotidianas e a paixão pela escrita. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?