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Cegxs de tanto ver
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Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.

Cegxs de tanto ver

CARLOS CAMPOS (Foto: CARLOS CAMPOS)
Foto: CARLOS CAMPOS CARLOS CAMPOS

"E trabalho escravo, você acredita?". Leio Sérgio Carvalho no instagram, 17 de março. A pergunta anterior é: "Você é do tipo que não acredita em coronavírus?". Auditor fiscal do Ministério do Trabalho, a iniciação nos grupos de combate ao trabalho escravo, em 1996, o leva a comprar uma câmera fotográfica. Documentação que se torna livro (Retrato Escravo, 2010, com o fotógrafo João Roberto Ripper). Em uma fala do Sérgio no Museu do Ceará, Centro de Fortaleza, no âmbito do Curso Realidade Brasileira, em 2018, vi parte das imagens. Estado de espanto. Desde 1995, mais de 50 mil pessoas foram resgatadas, no Brasil, de formas de escravidão contemporânea, segundo o Observatório Digital do Trabalho.

No mesmo dia 17, a fotógrafa Sheila Oliveira publica no instagram foto de uma senhora de costas na cozinha, a luz do mundo lá fora atravessando a janela aberta. A legenda: o silêncio das panelas. Pergunto onde foi feita. Aerolândia. Reposto e me repito: como pode ser tão invisível o trabalho das mulheres na sustentação cotidiana do mundo?

Outras perguntas chegam no cada vez mais ampliado e explícito campo de desigualdade em que vivemos. Sábado, 22, a aflição de uma trabalhadora doméstica. Havia chegado o dia da folga e ela iria, então, para casa. De Uber, pago do próprio bolso, a travessia cada vez mais perversa na Fortaleza que abriga diferentes experiências de cidade. Da chamada área nobre para uma das periferias, onde a matança instalada se autoriza dia após dia. Bem antes de qualquer peste. Há muitos modos de extermínio.

A guerra via whatsapp. A senhora empregadora a lembrar que, ao voltar da folga, ela poderia trazer a contaminação. Ela não deveria ter saído de folga. Exige que ela volte. Já avisada: voltar e ficar no serviço enquanto durar a pandemia. A guerra não cessa. Se não quer voltar, enviar um pedido de demissão. Com o pedido de demissão assinado, voltar e cumprir os 30 dias de aviso prévio. Envia cópia da lei. A senhora empregadora diz que está por ela resguardada. O caso não é único, sabemos.

Vi postagens do manifesto das filhas de domésticas. Pedem que suas mães sejam liberadas do trabalho e voltem para casa. Li no The Intercept: "bancos pressionam empresas de saúde para aumentar preços e lucrar com pandemia". Uma coisa é a morte, o morrer, condição nossa do existir. Outra é o matar. Saramago de memória: o mundo vive dando resposta, o que demora é o tempo das perguntas. Não, não é do livro As intermitências da morte. Nem do Ensaio sobre a cegueira.

 

 

Foto do Izabel Gurgel

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