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O branco é uma forma de silêncio
Foto de Izabel Gurgel
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Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.

O branco é uma forma de silêncio

Na antiga vila de rendeiras e pescadores, as mulheres ensinavam às mulheres a fazer renda. Ensinavam também aos homens. O ofício de fazer a renda se realizava no cotidiano. O ano inteiro.

As crianças eram iniciadas desde os quatro, cinco anos. Quando o mar não dava peixe? Seguia a produção do labirinto, o nome da renda bordada. A força do trabalho das mulheres na sustentação do mundo.

Conta-se que os primeiros visitantes chegaram nos anos de 1960 e 1970. Quanto tempo tem Canoa Quebrada? O poeta Zé Melancia (1909 - 1977), pescador filho de pescador e rendeira, refaz em cordel a história do lugar. Assinala mais de 300 anos. O tempo nos ultrapassa sempre.

À chegada dos invasores portugueses, povos ali residentes já sabiam viver do mar e da terra. A terra era um bem comum. Falésias entre o mar e as dunas sob uma abundância de céu. Muito espaço. Imenso vazio. A eloquência do vazio. A terra era de quem nela vivia.

Os visitantes dos anos de 1960, 70? Encantaram-se com a beleza, as pessoas do lugar. Em 1979, menos de 200 casas, mil e cem, mil e duzentos moradores. A disputa pela terra havia começado. Uma outra Canoa se desenha. Outro espaço. Outras relações. A paisagem nos olha, diz Mário Quintana.

Via Festival Alberto Nepomuceno/Fan, Canoa vira trabalho, fim de 2017. De imediato, pensei na presença silenciosa das rendeiras. Cada uma, todas elas, pulsações na paisagem. Embarcações no mar. Na terra, grades de labirinto (a estrutura de madeira onde se arma o tecido para bordar). Emanava das rendeiras tanta força no desenho da vida quanto o mar a ir e vir nas falésias, imensidão líquida à borda do monumental de tão lenta quanto imperceptível erosão.

Ah, era impossível ir lá e não ver as fazedoras do labirinto. À frente das casas, sentadas no chão, areia alva. Sozinha, curvada sobre o tecido branco na grade, agulha na mão, e o desenho surgindo à medida da dança no ar, linha-serpentina-mão. Aos pares, em grupos, cuidando das crianças, ensinando-lhes o ofício. Entre o lavar a roupa e o fazer a comida. Atenta à casa, à rua, ao mar.

A devastação tem tantos modos: como as labirinteiras se tornaram quase invisíveis em Canoa? O título do texto, um aforismo do Drummond, é um livro imaginário para guardar o nome das filhas, das mães: Carmélia da Rocha dos Santos e o sonho "de ficar velhinha fazendo labirinto". Osmira da Rocha Freire e as plantas. Caluça, Francisca Lúcia Freire de Oliveira, a dizer "Minha mãe era uma artista". Ester Maria restaurava labirinto. E nós?

Foto do Izabel Gurgel

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