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Oferendas para a vida em comum
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Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.

Oferendas para a vida em comum

Criança, vivi um tempo com a compreensão de que Vida Real era uma novela que não passava na tv lá de casa. Explico. Ouvia "Eles são casados na Vida Real", "Na Vida Real, a família era contra a vontade dela de ser artista" etc. Tão perto, tão longe, a sucessão de rostos na tv tinha desdobramentos para os quais eu não atinava. Tomei gosto por prestar atenção. E a Vida Real nunca deixou de florescer, também, como uma dramaturgia do espanto.

Outro dia, um amigo me levou para um ensaio da Beija-Flor na quadra da escola. Se é que existe um ensaio qualquer - ô força espantosa! -, aquele não era. Era o último ensaio antes do desfile oficial no sambódromo. No caminho, pediu para o motorista diminuir a velocidade e me orientou: "Olha pro lado esquerdo, presta atenção". Nilópolis, calçada do cemitério. E a cena para sempre inscrita na memória que peleja para estar à altura da Vida Real.

O branco é uma forma de silêncio, usei do Drummond como título no texto anterior aqui publicado, sobre rendas e rendeiras. Volto ali. Mulheres e homens expandiam o branco, como se a cor vibrasse feito música ao tempo em que descobria para que havia sido criada. Aí estou quase copiando Clarice dizendo do carnaval no Recife da sua infância e as ruas da cidade se dando conta do destino para o qual existiam.

Filhos de santo com uma orquestra de louça e cestaria, fartura e abundância se multiplicando - para isso existem - em oferendas de flores e frutas e frutos, ornadas de laços e amarrações investidas para pensar que, jamais, a vida pode ser menos. Tenho uma amiga que diz que, se algo lhe toca forte na leitura, para na hora e fecha o livro. Fosse um livro aquela calçada, um leitor seguinte me encontraria sempre naquela página.

Sigamos. Na quadra, quem nos recebeu dizia da emoção que se repetia quando ali estava: "Tanta coisa vivi aqui, desde os 4, 5 anos...". Havia um mar de gente. Fiquei nos altos. Digo, pela localização, que também estava em suspensão. Aos poucos, chão movente, um desenho surgia. As gentes dançando até virar coreografia-cosmogonia. O sentido do em comum. Samba-mantra. Um saber-se vivo, sentir-se vivo. Um tornar-se o desfile que seria. Para isso, as oferendas a noite toda, como vimos na volta.

No Rio como em Juazeiro, tempo de romaria. O chão chia. Modos de andar com fé tornados invisíveis, ainda que inventem uma cidade. Levo os dois. Eles me levam. A pandemia alastra o espanto com a novela perversa, e sem fim, no Brasil, de matar o que nos sustenta?

Foto do Izabel Gurgel

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