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Falta-nos vergonha
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Jáder Santana é jornalista e mestre em Estudos da Tradução pela Universidade Federal do Ceará

Falta-nos vergonha

Em tempos de infinitas complexidades, em meio ao ruído ordinário de tantas opiniões, envergonhar-se e ficar em silêncio é um ato de revolução
Tipo Análise
Vergonha é sentimento investigado pela filosofia e literatura  (Foto: Seva Levytskyi/Freepik)
Foto: Seva Levytskyi/Freepik Vergonha é sentimento investigado pela filosofia e literatura

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O que há de mais interessante nessa safra contemporânea de literatura com viés sociológico (ou sociologia com viés literário) que nos tem chegado da França nos últimos anos e que começa a influenciar alguns autores brasileiros (notadamente o estreante José Henrique Bortoluci, que é doutor em sociologia e cujo "O que é meu", recém-lançado, vem gerando comentários empolgantes na crítica especializada) é a exploração da vergonha enquanto sentimento revolucionário.

Falo aqui de autores como Annie Ernaux, cujas obras se espalharam pelas prateleiras de nossas livrarias depois do Nobel de Literatura de 2022, Didier Eribon, estudioso de Foucault e autor de "Retorno a Reims" (Âyiné, 2021), e Édouard Louis, o mais jovem dos três, que aos vinte e poucos anos publicou títulos como "O fim de Eddy" (Tusquets, 2018) e "Quem matou meu pai" (Todavia, 2023).

Ponto comum entre eles — além da intensificação, a partir de referenciais teóricos da sociologia, do que nos acostumamos a chamar de autoficção — é a elaboração corajosa que fazem da vergonha enquanto emoção catalisadora de revoluções internas em suas trajetórias pessoais, profissionais e intelectuais. Ernaux, Eribon e Louis narram como, consumidos pelo vexame da pobreza econômica e da aridez intelectual, lograram se construir enquanto sujeitos dissidentes (apesar da perenidade de alguns vestígios) de seu meio de origem.

Outro francês, o filósofo contemporâneo Frédéric Gros, aborda essa dimensão transformadora do constrangimento em "A vergonha é um sentimento revolucionário" (Ubu, 2023), no qual parte de referências históricas, filosóficas e literárias (incluindo a própria Ernaux) para refletir sobre o potencial "luminoso" e "incendiário" do sentimento.

Grós distingue duas possíveis respostas do envergonhado frente ao sentimento que o consome: a resignação e a ação. Ernaux, Eribon e Louis agem. Seus escritos narram as revoluções internas que os conduziram ao lugar que hoje ocupam enquanto produtores de correntes de pensamento que desafiam os "bons costumes" que os geraram.

Penso nisso enquanto vejo a profusão de comentários sobre conflitos que chacoalham o mundo e que recusam — não apenas pela complexidade da conjuntura em que se desenrolam, mas pelo elemento humano, intrinsecamente complexo, que envolvem — explicações fáceis, opiniões ordinárias.

Me lembro de um tempo, não muito distante, em que nos privávamos de abrir a boca, de agitar os dedos no teclado, e nos resignávamos, silenciosos, envergonhados, frente à profundidade de questões para as quais pouco ou nada podíamos contribuir. Movidos por essa vergonha, muitas vezes, decidíamos revolucionar nossa ignorância, transformando-a em estudo, investigação, aprendizado.

Nas redes sociais, na imprensa, nas conversas informais, vejo uma torrente de opiniões e opinadores, austeros, esnobes, desavergonhadamente rasteiros, e sinto falta dos rostos ruborizados, dos silêncios constrangidos, dos abalos físicos e emocionais que, ainda ontem, experimentávamos frente à vergonha de nossa própria ignorância.

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