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O inferno da união
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Jáder Santana é jornalista e mestre em Estudos da Tradução pela Universidade Federal do Ceará

O inferno da união

Persuadidos pela depuração afetiva promovida pela cultura do cancelamento e das condutas impecáveis, nos tornamos despreparados para as oscilações dos relacionamentos
Cena do filme
Foto: Divulgação Cena do filme "Anatomia de uma queda", de Justine Triet

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Há algumas semanas, a cineasta francesa Justine Triet, última ganhadora da Palma de Ouro no Festival de Cannes com seu filme "Anatomia de uma queda" (ainda não lançado no Brasil), foi entrevistada pelo suplemento cultural do jornal El País, da Espanha. Mais que suas anedotas sobre cinema e o processo criativo que originou o longa, são particularmente interessantes os momentos em que Triet se refere às dificuldades da vida conjugal.

O assunto é importante para o argumento do filme, que acompanha a investigação criminal a que é submetida uma escritora suspeita da morte do marido, em uma atualização da clássica dúvida: suicídio ou assassinato? Aos 45 anos, Triet se tornou a terceira diretora mulher a receber a Palma de Ouro em quase sete décadas de premiação.

Na entrevista ao El País, a cineasta afirmou, em espanhol: "O casal é uma tentativa de democracia que quase sempre termina em ditadura". Triet é companheira do também cineasta Arthur Harari, três anos mais jovem que ela e que aparece no texto do jornal instalando uma cadeira de bebê na bicicleta da diretora enquanto ela conversa com o repórter.

Em outro momento da entrevista, a cineasta propõe que "sejamos sinceros": "o estranho é que um casal funcione. Na maioria dos casos, é um inferno". Triet é francesa e pertence ao meio artístico, o que quase naturalmente a afasta de pudores antigos (ou novos, adquiridos nesta geração) nutridos em outras sociedades, inclusive a nossa. Cinco anos atrás, outra francesa, a atriz Catherine Deneuve, precisou se desculpar publicamente após assinar carta que defendia a liberdade do flerte masculino.

A retratação de Deneuve, embora motivada pelo movimento massivo e infame das redes sociais, teve efeito didático. Ela defendia o flerte, e não o assédio. Condutas discordantes, quase opostas, mas que as mesmas redes sociais se esforçam por confundir. Cinco anos depois, a fala de Triet, proferida em um momento de ânimos mais serenos (em 2018, o #MeToo vivia seu auge), passou despercebida.

Na mesma entrevista ao El País, enquanto vê o marido cuidar de pequenas tarefas domésticas, Triet brinca com a situação e diz, entre gargalhadas, que ele o faz "apenas para a imprensa, para que acreditem que é um homem submisso". O tom zombeteiro de suas colocações sobre relações conjugais imprime ao assunto um frescor difícil de se detectar nas reflexões a esse respeito veiculadas em nossos espaços de debate ou difusão intelectual, saturados por um moralismo que ganha contornos diferentes a depender do espectro político de que se originam.

Triet fala do casamento, essa união fundamentalmente disfuncional, como campo de dissimulação e ressentimento. Mas ela continua encadeada ao seu, fazendo troça do companheiro, sublimando desprazer em arte. O casal é, para ela, ditadura e inferno. É também prazer, intimidade e companheirismo. Não é plano e apático, como, ao que parece, é preciso ser para ser real.

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